Observatório de deficiências e Covid-19 no Brasil. Entrevista com Éverton Luís Pereira.
Por Juana Valentina Nieto-Moreno . 25/05/2022
Éverton Luís Pereira
Doutor em Antropologia (UFSC). Professor do Departamento de Saúde Coletiva da UnB e pesquisador do Instituto Brasil Plural. Coordenador do Observatório de Deficiências, vinculado ao Núcleo de Estudos em Saúde Pública (NESP) do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília (UnB). Entre 2019 e 2020 fez estágio pós-doutoral no Medical Anthropology Research Centre (MARC) da Universitat Rovira i Virgilia, Tarragona, Catalunha, Espanha.
O Observatório de Deficiéncias nasceu com o objetivo de juntar pesquisadores de diversas disciplinas, interessados nesta questão para produzir conhecimento e insumos para o desenvolvimento de políticas públicas, produção científica e mídia. (veja o site Observatório de Deficiências)
Juana Valentina: Como surgiram as pesquisas sobre Covid-19 no Observatorio de Deficiências?
Éverton: Em abril de 2020, a UnB abriu um edital para que os professores produzissem projetos sobre a Covid-19 em nossas áreas de expertise. Preocupado pelo fato de que no Brasil não existe nenhuma resposta pública para as pessoas com deficiência no contexto da pandemia, nem sequer dados, escrevi o projeto. Pensamos inicialmente em algo mais localizado, no Distrito Federal, onde conhecíamos mais o campo. A partir disso, começamos a buscar financiamento, pois a UnB tinha um número limitado de recursos para financiar pesquisas e o investimento dado pela universidade naquela época foi a respostas imediatas, – como produção de gel, respirados, testes-. Conseguimos apoio da Federação Nacional das APAES (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais), que já era parceira de outras pesquisas e decidiu financiar o projeto sobre Covid-19 e deficiência.
Além dos professores, o projeto envolve diversos alunos de iniciação científica, bolsistas de pós-graduação em ciências sociais e em saúde coletiva. Também temos uma tese de doutorado e duas dissertações de mestrado sendo produzidas a partir dos dados dessa pesquisa.
Começamos por contatar as associações e grupos de pessoas com deficiência que conhecíamos pela experiência de campo em outros projetos. Começamos pelo Conselho Nacional de Direitos das Pessoas com Deficiência (CONADE), depois os conselhos estaduais, e os conselhos municipais. Falamos com a Associação Nacional de Cegos no Brasil, que nos passou um conjunto de associações locais de cegos para entrar em contato.[1] Depois disponibilizamos um link com um questionário estruturado com diversas perguntas, desde o mais básico -sociodemográficas, renda, sexo, raça, moradia- , questões de saúde/Covid, assim como consequências da Covid desde outros pontos de vista -perdas financeiras, busca e acesso a serviços. O link ficou aberto no ano de 2020, desde agosto até final de novembro, e depois por mais alguns meses em 2021, e tivemos 13.349 respostas.
Entrevistamos 115 pessoas com deficiência que tiveram diagnóstico positivo de Covid-19 de todas as regiões do país, diferentes tipos de deficiências e faixa etária. A ideia foi compreender as diferentes experiências de adoecimento e também as diferentes formas como as políticas públicas afetaram as vivências das pessoas com deficiência durante a pandemia da COVID-19. A ideia de ter pessoas de diferentes estados foi para entender como cada estado respondeu a essa emergência em saúde pública.
Valentina: o que vocês encontraram nesse primeiro momento da pesquisa?
Everton: Temos visto o empobrecimento massivo das pessoas com deficiência. Muitas delas perderam seus empregos, pois em geral são os primeiros a ser demitidos quando se precisa demitir funcionários. E eles não conseguem acessar ao auxílio emergencial, porque por um lado eles não são considerados como prioridade e por outro, porque muitos têm outros benefícios, como BPC que é o Benefício de Prestação Continuada, que os impede de acessar ao auxílio emergencial. Então, temos visto um aumento na demanda por tecnologias em saúde, como medicamentos, que nem o BPC dá conta de pagar. Assim é evidente que quem é pobre ficou ainda mais pobre.
Em relação à funcionalidade e ao manejo do corpo, a tendência é que essas pessoas percam alguns avanços funcionais. Tanto no movimento do corpo, como de interação com outros sujeitos. A partir dos questionários vemos que o isolamento não significou necessariamente uma grande mudança, pois estas pessoas estão a maioria do tempo trancadas em casa. Mas, antes estas pessoas frequentavam as escolas ou as terapias, ou os espaços biomédicos, espaços de interação e socialização, que perderam por causa das medidas de distanciamento social.
Para estas pessoas, adoecer requer uma organização da rotina muito delicada. Por exemplo, das 3 pessoas que falamos semana passada, uma pegou coronavírus e duas tiveram casos na família. Um deles é um senhor com Síndrome de Down que ficou sozinho, pois sua mãe de 70 anos, que cuidava dele, ficou internada na UTI. Outra é uma jovem com deficiência intelectual que junto com sua mãe ficaram internadas e deixaram sozinho o pai idoso. Enfim, a esta situação se soma uma ausência do Estado de forma generalizada, uma sensação de abandono que resulta numa narrativa do cansaço das políticas públicas. As pessoas dizem: “não, eu já não vou mais”; “não, larguei a mão, não vou mais procurar”.
O projeto tem quatro fases. Uma é a produção de informações, mais quantitativas, a segunda é as entrevistas a profundidade, a terceira é esse acompanhamento mais longitudinal e a quarta o trabalho com as bases de dados oficiais do governo federal. Hoje em dia, o Governo Federal não tem informação sobre os efeitos da Covid-19 nas pessoas com deficiência. Então queremos fazer o cruzamento com números do CIDs (Classificação Internacional de Doenças) para ter informação. Nós trabalhamos com alguns bancos de dados do Ministério da Saúde e também dados da assistência social do Distrito Federal. Assim podemos ter dados sobre pessoas que perderam seu emprego, evasão escolar, etc.
Valentina: Como o projeto pode contribuir no desenvolvimento de políticas públicas adequadas às realidades das pessoas com deficiência?
Éverton: A ideia é dar voz para essas pessoas com deficiência intelectual. Tem muitas coisas bacanas para escutar que podem contribuir para a política e ter uma mudança nas práticas. Já publicamos uma nota breve fomentando o debate na academia e nas políticas públicas, lançaremos em breve um documentário com a experiência de seis pessoas com deficiência com a COVID-19 e também participamos de uma audiência pública na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) para debater o tema. A ideia é fomentar o debate e produzir evidências para instrumentalizar as políticas públicas[2].
Também estamos investindo em pautar o debate da deficiência no espaço acadêmico. Por exemplo: desde setembro de 2021, estou com três estudantes de ensino médio com deficiência intelectual como bolsistas de Iniciação Científica Júnior (PIBIC-EM) pelo CNPq atuando na pesquisa sobre COVID-19. Ter esses estudantes de ensino médio com deficiência, na pesquisa, faz com que a gente precise repensar muitas questões. Considero que esse movimento também é uma forma de produzir respostas para auxiliar nas políticas públicas.
Paralelo a isto, estamos executando dois novos projetos, que nasceram a partir da pesquisa sobre pessoas com deficiência e COVID-19. Percebemos que as pessoas com deficiência que participaram da pesquisa tinham dificuldade em entender seus direitos (inclusive de pensar nos itinerários de busca necessários para o acesso). Além disso, a pesquisa mostrou que as famílias ainda tendem a superproteger as pessoas com deficiência. Por isso, uma das iniciativas foi propor um projeto de extensão no qual estamos produzindo dois cursos de extensão ofertados pela Universidade de Brasília (UnB) para pessoas com deficiência e suas famílias. Os cursos terão carga horária de 60 horas e vão falar sobre a importância da autonomia para as pessoas com deficiência e sobre a garantia de direitos para esse grupo. Os cursos estão sendo produzidos por professores e pesquisadores da UnB, em parceria com a Federação Nacional das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (FENAPAES) e terão suas primeiras turmas em setembro de 2022.
A segunda iniciativa é uma pesquisa sobre pessoas com deficiência que vivem em acolhimento institucional no Brasil. Também percebemos, durante a pesquisa, que não sabemos quase nada sobre as pessoas com deficiência que moram em abrigos pelo Brasil afora. A partir das experiências internacionais (e principalmente com base nos abrigos de idosos), sabemos que a Covid-19 teve impactos muito negativos nesses espaços, com muitos falecimentos e adoecimentos. Porém, no Brasil, não sabemos nada. Assim, nasceu a pesquisa “Pessoas com deficiência vivendo em acolhimentos institucionais: consequências da COVID-19, autonomia e organização da rede de cuidado”, que busca conhecer essa realidade. O projeto é financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF) e pela FENAPAES. Em breve devemos ter também resultados dessa atividade.
A ideia é que este segundo projeto dê continuidade ao que estamos trabalhando agora e procurar vias para escutar as pessoas com deficiência e que estas pessoas ajudem a propor e construir alternativas de políticas públicas.
[1] Sobre a pesquisa na ANCB: https://ne-np.facebook.com/observatoriodeficiencia/videos/oncb-entrevista-%C3%A9verton-pereira-pesquisador-do-obervat%C3%B3rio/1148732835542957/
[2] Sobre este ponto ver:
https://www.scielo.br/j/icse/a/5jt6TTK54FxZnwdD9jkpNBm/
https://edemocracia.cl.df.leg.br/audiencias/sala/305
Foi também realizada uma atividade na Semana de Extensão da UnB em que se convidou uma mulher cega de uma associação de SC, um pai de um homem com deficiência do DF e uma profissional de uma associação para discutir sobre a situação de Covid-19.