Patrimônio cultural e os ribeirinhos do rio São Francisco em tempos de Covid-19

16/06/2020 - Por Valentina Nieto

Rafael de Oliveira Rodrigues é doutor em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Cataria (UFSC), faz parte do grupo de pesquisadores do Núcleo de Dinâmicas Urbanas e Patrimônio Cultural (NAUI/UFSC) e da Rede “Territórios: Territorialidades, Deslocamentos, Paisagens Urbanas e Populações Tradicionais” do INCT Brasil Plural.  Atualmente faz parte do Laboratório da Cidade e do Contemporâneo (LACC), vinculado ao programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), onde trabalha desde 2015. Ele é especialista em políticas públicas de patrimônio cultural e nos falou sobre seu trabalho de pesquisa em temos de pandemia:

Valentina: De que forma a pandemia tem afetado seu campo de pesquisa?

Rafael: Ao longo dos anos da minha formação tenho atuado no campo de estudos das políticas públicas do patrimônio cultural. Desde que iniciei o trabalho na UFAL, tenho desenvolvidos pesquisa de campo nos centros históricos das cidades de Piranhas, no sertão do estado de Alagoas, e na cidade de Penedo, localizada próximo ao litoral, também em Alagoas. Então, o primeiro impacto da pandemia foi a dificuldade em manter uma agenda de trabalho de campo nas cidades onde tenho desenvolvido pesquisa. Com as medidas de isolamento social, impostas como forma de evitar as infecções decorrentes da Covid-19, foi necessário readequar nossa agenda para realizar o trabalho de pesquisa através do uso das tecnologias digitais e seus canais de comunicação, como também através do acesso aos documentos produzidos pelos diferentes grupos que interagem com o patrimônio histórico e cultural nessas cidades: o poder público, o mercado do turismo, os pequenos comerciantes e as comunidades ribeirinhas, que vivem às margens do rio São Francisco, que corta as duas cidades. No que se refere a este último grupo o acesso à informação tem sido mais difícil.

Valentina: Que estratégias têm mobilizado os grupos populacionais com os quais trabalhas?

Rafael: Bem, o poder público e os grupos ligados ao setor turístico já trabalham juntos há bastante tempo no estado de Alagoas. Uma coisa que pude observar ao longo dos últimos anos pesquisando as políticas públicas de patrimônio cultural no estado tem sido uma tendência de atuação conjunta dos empresários do setor. Se você olha para o estado, do litoral ao sertão, as agências e empresas de turismo têm trabalhado em conjunto com o governo. Por exemplo, se você chega na Capital, em Maceió, principal porta de entrada para o estado de quem vem de outras regiões, você observa que existem estratégias conjuntas dos empresários que permitem que os turistas possam conhecer todo o estado, especialmente os centros históricos de Piranhas e Penedo. Então, se você é um empresário do setor hoteleiro de Piranhas, você atua em parceria com empresários do setor hoteleiro da capital, com incentivo do próprio governo do estado, promovendo uma logística que integre essas duas cidades como roteiro turístico fundamental do estado, é o que os representantes deste setor chamam de turismo das águas: em Maceió o foco é nas praias e no mar, em Piranhas e Penedo o foco está no rio São Francisco.  Voltando minhas atenções especificamente para os ribeirinhos e pescadores, que têm suas vidas ligadas às águas do rio São Francisco, à medida que essas cidades foram reconhecidas como centros históricos de valor nacional, entre 1995 e 2005, o turismo tem impactado sobremaneira no modo como eles vivem. Os mais velhos têm se juntado em cooperativas de pescadores, numa tática de dividir o pouco lucro que eles conseguem tirar da pesca. Já os mais jovens têm vendido sua força de trabalho para as empresas de turismo, oferecendo suas pequenas embarcações, ou utilizando as embarcações das próprias empresas, para suprir as demandas dos turistas para conhecer o patrimônio cultural e natural das duas cidades. Mas uma coisa que tenho notado é uma queixa generalizada dos ribeirinhos, que afirmam se sentir excluídos, tanto do processo de reconhecimento e salvaguarda destas cidades, pelo poder público, como também de políticas que os agregue ao setor turístico e ao mercado de trabalho de modo mais independente das empresas que promovem o turismo nas duas cidades.

Valentina: Há ações do governo para minimizar ou atender as afetações particulares no teu campo de pesquisa?

Rafael: Antes da pandemia já havia uma série de ações, voltadas tanto para o setor turístico e os pequenos comerciantes de Penedo e Piranhas, quanto para os ribeirinhos que vivem da pesca, ou mesmo para os que migraram para o turismo. Como disse, há um grande incentivo para que os diversos empresários do setor (hoteleiro, gastronômico, etc.) estabeleçam parcerias, avançando com o turismo para o interior do estado. Já para os ribeirinhos também há uma série de estratégias por parte do poder público, como, por exemplo, fomentar uma educação para preservação do patrimônio histórico das duas cidades, para que eles se habituem a viver em um centro histórico tombado, ou seja, para que aprendam a viver em imóveis que, apesar de seus, necessitam de aval do poder público para qualquer modificação. Além disso, há também uma série de capacitações para tentar agregá-los ao mercado de trabalho formal e informal que se desenvolve ao redor do turismo nos centros históricos locais. Mas essas estratégias visam mais atender as demandas do mercado de turismo do que as demandas dos ribeirinhos e pequenos comerciantes propriamente. Pensando mais especificamente nas estratégias para minimizar os impactos da Covid-19, o poder público local e federal tem dado uma série de incentivos para garantir a sustentabilidade econômica do setor turístico. O que me preocupa mais são os pequenos comerciantes e os ribeirinhos, estes últimos especialmente, pois eles estão completamente dependentes dos programas sociais do governo federal. Eles estão à mercê do sistema de informação do governo para viabilizar a liberação de recursos para atravessar a pandemia, ou então dos programas das secretarias de desenvolvimento social dos municípios para viabilizar a entrega de cestas básicas, equipamentos de proteção individual. Ao final das contas percebo que as pequenas comunidades ribeirinhas e rurais isoladas, principalmente as difusas nas bordas das duas cidades, continuam sem acesso aos serviços públicos básicos.

Valentina: Qual é o dever do antropólogo/a neste momento da pandemia?

Rafael: Ao longo da minha formação percebo que há certa lentidão, ou mesmo pouco interesse, do poder público em se atualizar sobre o conhecimento que produzimos sobre a diversidade cultural e sobre as demandas dos diferentes grupos sociais que integram a sociedade brasileira, especialmente grupos historicamente negligenciados, como, por exemplo, os povos tradicionais (indígenas, quilombolas), ou mesmo os excluídos de serviços públicos básicos nas grandes cidades. Acho que um dos principais deveres/contribuições da antropologia para este momento de pandemia está em fomentar a criação de equipes e redes de colaboração que visem dar apoio e assessoria nas mais diferentes esferas, jurídica, administrativa, econômica, cultural, para esses grupos no atendimento de suas demandas, sejam por saúde, educação, acesso a terra, ou mesmo consumo de bens e serviços, frente ao poder público.