Distanciamento comunitário? Perspectivas sobre COVID-19, favela e transferência de renda

Viviane Mattar (Doutoranda em Saúde Coletiva – IMS/UERJ)
Rogerio Lopes Azize (Professor Adjunto – IMS/UERJ)
Rodrigo de Araujo Monteiro (Professor Adjunto – COC/UFF)
FOTOS: Viviane Mattar

  1. Introdução

No presente momento, ao chegar junho de 2020, nada nos parece mais urgente do que refletir sobre os quadros possíveis, em alguns aspectos já tão prováveis e presentes, em outros com algum nível de especulação, do encontro do Coronavírus com contextos de pobreza extrema. Judith Butler (2004) nos oferece uma distinção já conhecida que evidencia nosso ponto de partida: nossa condição humana é precária, isso vale para todos, um certo caráter democrático da atividade de um vírus nos lembra disso; mas nossa precariedade é diferencial, marcada pelas nossas diferenças de idade, de raça/cor, de gênero, de classe. Teme-se muito que haja mutações do vírus, que podem atrapalhar a busca por tratamentos e, especialmente, vacinas; mas, ainda que o vírus seja o mesmo, nós não somos – de certa forma, forçando o sentido da noção de mutação, pensando nos seus efeitos em condições tão distintas, são muitos os vírus em uma pandemia porque são muitas as precariedades.

Seguindo este raciocínio, vamos partir aqui de experiências de pesquisa em favela para pensar o encontro de uma pandemia e do seu vocabulário particular com as condições de vida e moradia nesses locais, marcadas por vulnerabilidades diversas, por redes de apoio e vigilância particulares, e por uma distância monumental do Estado de Bem Estar, ao mesmo tempo em que programas de distribuição de renda como o Programa Bolsa Família (PBF) ou o Programa Família Carioca são tão presentes que marcam a sociabilidade local, sua economia, seu modo de vida, configurando o que poderíamos chamar de um fato social total (Mauss, 2003). Nesse espaço curto, num momento que nos exige reações rápidas, vamos refletir sobre (1) condições de isolamento e adesão a normas sanitárias; (2) cenas e formas locais de controle da circulação de pessoas; (3) impactos possíveis da ampliação de programas de transferência de renda, cujo público alvo deve se tornar mais heterogêneo.

  1. Sobre diferentes taxas de isolamento

Para evitar o espraiamento do vírus no curto prazo e a sobrecarga no sistema de saúde, o “distanciamento social”[1] foi assumido em boa parte do mundo como um mal necessário, exceção de negacionistas que desafiam ao mesmo tempo ciência e senso comum. Calcula-se dia a dia as taxas de distanciamento necessárias para achatar uma curva mortal, para atingir um platô e deixá-lo o quanto antes. Concordamos e queremos ao mesmo tempo desafiar o termo “taxa”, porque ele responde também por algo que se paga e nos remete a uma economia política da pandemia. E o nível de pobreza que encontramos, por exemplo, na Favela do Tripé, na zona oeste do Rio de Janeiro, na zona mais pobre de uma heterogênea favela maior, onde desenvolvemos (e orientamos) trabalho de campo, não permite pagar tal preço. A tão almejada taxa de isolamento, nesse caso, guarda alguma proporção com o que se paga de IPTU.

Falar de “distanciamento social” na favela nos leva, em primeiro lugar, a tentar entender o que significa isolamento para uma família de aproximadamente seis habitantes que dividem um pequeno ambiente. Será possível, nessa realidade, atender à recomendação de evitar o contato social e produzir o isolamento? Perguntamos isso a interlocutoras de pesquisa, que respondem com o seu possível: é claro que estão se cuidando, dentro das suas possibilidades, nos seus modelos de casas mais abertas, de paredes mais porosas, de uma sociabilidade algo vigilante, não porque os muros sejam baixos, mas porque eles não existem de forma concreta. Ali se produz muitas vezes o que estamos chamando aqui de um “distanciamento comunitário”, que procura sair menos da favela, mas que é vivido em conjunto: “aqui tá todo mundo bem e a gente continua levando, a gente não sai pra baile e pra festa assim, mas claro que a gente faz a baguncinha da gente aqui”, diz uma interlocutora da pesquisa, que traz a imagem vista muitas vezes das mulheres e crianças nas portas das casas.

Embora o medo da morte (Novaes, 2006) seja já algo presente em juventudes periféricas e de favelas por conta de confrontos entre quadrilhas de traficantes, policiais militares e civis, milícias, a experiencia com a pandemia pode potencializar essa sensação, apontando para uma ampliação. Na favela, os modos de sociabilidade criados muitas vezes pelas extensões das casas com suas portas e janelas abertas, onde muitas vezes é difícil delimitar uma fronteira entre as residências, fazem com que o isolamento seja comunitário, já que os indivíduos acabam por compartilhar a cozinha, o quintal onde se arrumam as balas para vender no sinal, a rua para receber doações vindas de fora da favela e tantos outros espaços que compõem e interseccionam aquelas habitações.

As pessoas fazem o que podem na favela, onde a escassez pode virar fome rapidamente, o equilíbrio é tênue. Ao menos uma refeição para as crianças era garantida pela escola quando corria a pesquisa (Mattar, 2019), mas agora essa pequena garantia não existe mais. Estamos falando de uma refeição garantida pela merenda escolar, não estamos discutindo aqui a possibilidade de ensino à distância ou a qualidade da banda larga. As cenas de surrealismo aplicado se multiplicam.

A favela faz o que pode.

  1. “Abrace o papo ou o papo vai te abraçar”

Há muitas versões do aviso, do “comunicado importante”, do carro de som que passa na favela anunciando um certo estado de coisas onde o Estado não chega. O estilo varia pouco entre os vídeos e áudios que são compartilhados para dentro e para fora da favela, inclusive conosco, pesquisadores. Falamos aqui a partir da coletânea errática deste material, o que nos chegou como exemplos dessa “política dos governados”(Chatterjee, 2011, p. 199), ou seja, a ideia de que os agentes, mesmo que em condições desfavoráveis não são percebidos como vítimas, mas como partes ativas em complexo padrão de atividades sócio-políticas.

O “carro da lapada” passa às 19:30, porque a partir das 20h não se deve mais andar na rua, “vamos nos cuidar”. “Este comunicado não é toque de recolher, apenas queremos que cumpram as ordens”, diz o toque de recolher, o governo do possível, que anuncia um outro “nós”, não aquele que sai no jornal na televisão: “Queremos o melhor para nossa região, se os governantes não estão tendo a capacidade de dar um jeito, nós iremos dar! Quem for pego descumprindo as ordens, irá aprender a respeitar o próximo!”. A pandemia pede a todos uma transformação rápida de hábitos, seja de higiene, de circulação ou proximidade. Há uma pedagogia do cuidado de si e dos outros que precisa ser rapidamente incorporada e a favela faz o que pode, recortada pelo tráfico, pela milícia, por jovens, pelo trabalhador, e por quase todos aqueles que são sempre considerados “envolvidos” por olhos de fora, no sentido de uma relação de proximidade com o tráfico. “Aqui no Acari”, ri alguém que nunca saberemos de quem se trata, “o carro da lapada se apresenta” caso as pessoas se recusem a usar máscaras.

“À noite, só será permitido quem trabalha com entrega e tem que estar de máscara e luva, isso é obrigatório”, diz um outro áudio, que, por motivos distintos do usual, nos leva a pensar na categoria dos trabalhos essenciais – neste caso, essencial ao trabalhador ele mesmo, não aos usuários do serviço. Pensar as diferentes possibilidades de adesão a normas de distanciamento social e higiene será tarefa de primeira ordem, que pede diálogo com camadas sociais distintas. É preciso lembrar que, para grande parte da população, o cotidiano pouco mudou, no sentido do horário em que se deve acordar e que se pode voltar a dormir.

Entre o humor e a ameaça, a jocosidade e a “lapada” – não vamos comentar e nem moralizar aqui o monumento de iniciativas das quais se tem notícia na favela, que nada tem de singular –, a favela faz o que pode em tempos de Coronavírus.

  1. Mudanças e transferências de renda

Nos três últimos anos, as questões em torno do PBF se intensificaram. Falava-se no debate sobre o crescimento da fila para cadastro no programa e sucessivos cortes de beneficiários[2], como verificamos em pesquisa (Mattar, 2019) com beneficiárias do programa na Favela do Tripé. Ali, verificamos que alguns mecanismos de sociabilidade já conhecidos no ambiente da favela, as redes de apoio via associações vicinais, ou pelas igrejas, ONGs,  se manifestavam em novos e velhos formatos quando o benefício era descontinuado, quando se mantinha, ou mesmo a respeito de variação nos valores a receber, com critérios que aquelas mulheres não entendiam, e que o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) nem sempre ajudava a compreender.

A criação de um auxílio emergencial, com recursos federais e que se repetem em diversas prefeituras por todo o país, nos ajuda a pensar no lugar do PBF, bem como em projetos de renda básica universal. O auxílio emergencial mensal[3] habilita tanto as pessoas inscritas no Cadastro Único (banco de dados com informações de famílias em situação de pobreza e extrema pobreza com objetivo de promover melhores condições de vida para indivíduos por meio da implementação de políticas públicas) quanto as que não se encontram inscritas. Em ambos os casos, profissionais autônomos, trabalhadores informais desempregados e beneficiários do PBF (que poderão optar entre o auxílio emergencial e sua renda do programa), receberão o valor como forma de proteção emergencial durante o período de enfrentamento da crise gerada pela pandemia do coronavírus.

Entre os muito a serem beneficiados pelo auxílio emergencial, estão trabalhadores informais: pedreiros, motoristas de aplicativos, camelôs e outros. Baseados nesse fato e nos iluminando na pesquisa (Mattar, 2019) realizada na Favela do Tripé, onde se mostrou constante o jogo de acusações e vigilâncias que recaia sobre os beneficiários do PBF, é importante nos questionarmos que papel esses indivíduos, os que receberão os auxílios emergenciais, vão ocupar nos jogos de controle e acusações. Não se trata apenas de reforçar o PBF enquanto esforço de ajuda humanitária que assegura renda mínima em contextos de pobreza, que sempre pode se acentuar, mas de refletir sobre como o auxílio lançado no último dia 07 de abril de 2020 para oferecer amparo em um momento de crise,  pode reconfigurar e ampliar a visão do “bem estar social” e dos programas de transferência de renda. Aqui estamos sendo especulativos e, mais uma vez, apostando em perspectivas para agendas de pesquisas. Naquele contexto, políticas de compensação como o PBF eram vistas pelas mulheres como forma de ampliação da sua autonomia. Uma vez cristalizado novo contexto, no qual se espera aumento brutal do desemprego, e ampliação de iniciativas de compensação para parcelas ainda maiores da população, como este cenário se equilibra?

A reafirmação das convenções de gênero colocava a mãe no centro e como a única responsável pelo cuidado do filho, já que a mulher é priorizada para o recebimento do PBF. Deslocando esse debate para a nossa atual conjuntura, se faz necessário pensar se esse jogo de moralidades será ampliado para o novo auxílio emergencial, que é recebido tanto por homens como por mulheres, e de que forma podemos pensar e repensar as relações e convenções de gênero a partir das situações criadas pela pandemia.

  1. Para concluir perspectivas

Estamos assistindo a mais um capítulo, sem dúvida dos mais dramáticos, no que chamamos de uma “instabilidade na gestão da precariedade” (Mattar, Azize e Monteiro, 2019, p.1). Uma reviravolta, na qual o programa que por vezes encarna o grande adversário, para quem acusa um assistencialismo do Estado, vira em uma nova versão, um atalho essencial, o caminho mais simples e direto para um auxílio emergencial que tem como objetivo manter a renda a uma parte de trabalhadores durante a crise do Coronavírus.

É necessário atentar para os múltiplos usos que o gerenciamento e a racionalidade dos moradores de favelas apontarão para a aplicação dos recursos do auxílio emergencial. Além da compra de itens básicos para a sobrevivência, argumento que justificou a implantação do auxílio e com todo conflito que se sucedeu entre Congresso Nacional e Poder Executivo, é possível pensar em diversas estratégias que farão ser utilizados os recursos do auxílio emergencial.

No Brasil, onde o acesso a um pacote básico de direitos não atingiu parcelas significativas da população, onde a “cidadania sacrificial”, que dá passagem da ideia de direitos universais a sacrifícios a serem cumpridos em nome de uma certa ordem “política-econômica” (Brown, 2018, p.10) abstrata encontrou terreno fértil em uma parcela da população que encampou e legitimou reformas trabalhistas, previdenciárias e educacionais, mas já encontrou populações com baixa efetividade em direitos, reforçando por aqui também a “política dos governados”(Chatterjee, 2011, p.199). Um neoliberalismo latino-americano de adesões variadas e arranjos profundos em curso e que se aprofundou em terreno onde o welfare state nunca viralizou.

Pensando em vulnerabilidade enquanto algo relacional, neste caso, esses indivíduos estão expostos a múltiplos riscos sejam eles econômicos, sociais, culturais e, em combinado deles, ao COVID-19 e à gravidade dos casos. Agora, o que nos cabe pensar é de que forma iremos enfrentar esses variados fatores na busca de uma cura que vai além do coronavírus. A resposta que a sociedade dará à necessidade do isolamento selará não apenas o destino de muitos indivíduos, mas do próprio futuro da democracia, da desigualdade e do que poderemos definir como processo civilizatório.

Bibliografia:

BROWN, W. Cidadania Sacrificial. Neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Zazie Edições, 2018

BUTLER J. Precarious Life. The power of mourning and violence. London/New York: Verso, 2004

CHATTERJEE, Partha. La política de los gobernados. In: Revista Colombiana de Antropologia 2011 Jul- Dez; 47:199-231

MATTAR, V., AZIZE, R., & MONTEIRO, R. Programa Bolsa Família e a instabilidade na gestão da precariedade: refletindo sobre futuros possíveis. Cadernos Campo (São Paulo 1991), v. 28(2), p. 39-45. Disponível em:  https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/163555

MATTAR V. Moralidades em torno do Programa Bolsa Família, gênero e alimentação: um estudo de caso a partir de uma favela no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Dissertação [Mestrado em Saúde Coletiva] – Instituto de Medicina Solcial/UERJ; 2019.Novaes, R. Os jovens de hoje: contextos, diferenças e trajetórias. In: Culturas Jovens. Novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. P. 105-20.

MAUSS M. O ensaio sobre a dádiva. In: Mauss M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac e Naify, 2003.

NOVAES, R. Os jovens de hoje: contextos, diferenças e trajetórias. In: Culturas Jovens. Novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. P. 105-20.

 

[1]https://www.ufrgs.br/telessauders/posts_coronavirus/qual-a-diferenca-de-distanciamento-social-isolamento-e-quarentena/. Acessado em: 29 de maio 2020

[2]https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02-14/ministerio-publico-federal-cobra-do-governo-bolsonaro-providencias-para-reduzir-fila-do-bolsa-familia.html Acessado em 29 April 2020

[3] https://www.gov.br/pt-br/servicos/solicitar-auxilio-emergencial-de-r-600-covid-19  Acessado em 29 April 2020