O que faz um antropólogo isolado em um Ilê?

08/06/2020 - Igor Luiz Rodrigues da Silva, Doutorando PPGAS/UFSC [1]

Primeiro sábado do mês de maio, mês dedicado aos Pretos e Pretas Velhas na Umbanda e desde que a quarentena começou (isolamento social), é aqui que me encontro, no GUESB (Grupo União Espirita Santa Barbara), e por isso mesmo, esse texto ou reflexão parte e se contextualiza a partir deste ambiente sagrado.

Longe de ser um texto altamente rebuscado e com uma analise profunda sobre a pandemia do Covid-19, este relato se estabelece a partir dos encontros provocados pelo silêncio e alteridades marcadas pela fé e conflitos de mundos. Neste sentido, trata-se de exteriorização dos sentimentos que dialogam com o isolamento e com o ser umbandista.

Ano passado, eu propus aos meus e minhas colegas do PPGAS-UFSC, que organizavam comigo mais uma jornadas antropológicas, o tema: “Antropologia, vidas em ebulição e mundos em ruínas…” com uma justificativa que dizia mais ou menos o seguinte:

“Queremos chamar atenção para toda uma onda de lama, de pó, de destroços, desmatamentos, poluição, chacinas de corpos de mulheres, indígenas, quilombolas, negros e LGBTI. E dos soterramentos de vidas, paisagens e tradições. Bem como a retirada de direitos e da profunda empatia pelo ódio e pela inverdade.

O mundo, principalmente as nossas terras subdesenvolvidas e dentro destas o Brasil têm suas ruas e avenidas manchadas de sangue, cobertas por água e esgotos que mais parecem rios, levando por onde passam, carros e mais corpos. Justiça escolhe lados, desequilibrando a balança da igualdade, rasga o que nos resguarda e cria mais insegurança e medo na população. São famílias inteiras perdidas nas encruzilhadas das fronteiras, morrendo aos montes, inclusive de fome e sede, tendo seus corpos dilacerados por tiros, bombas e granadas. Barcos e navios afundam. Corpos boiam e se perdem na imensidão dos oceanos.

Regimes totalitários violando liberdades e direitos, enquanto bombas destroem casas, vilas e cidades inteiras, mundos em ruínas, pó e fumaça são sinais da destruição. Mundos virtuais viram, por excelência, verdadeiros campos minados para a intolerância religiosa, racismo, LGBTfobia, machismo, capacitismo e xenofobia. Os espaços cibernéticos viraram lugar sem lei, sem justiça, sem punição, terreno fértil para ataques contra a dignidade, propiciando a banalização da vida e da morte.

A livre expressão artística vira caso de polícia, ganha status de crime e linchamento público. A dignidade é corroída dentro das salas de aula, em leitos de hospitais. Perdemos vidas, tudo em nome da burocracia, mas não há limites para a corrupção. Universidades públicas são atacadas, a Ciência achincalhada, perdendo todo o valor. As Ciências Humanas têm seu papel e status questionado, a Antropologia é cada vez mais alvo do poder público e tem seu papel científico desvalorizado.

Professores e professoras têm sua condição de ensino na mira dos alunos, que com celulares e câmeras nas mãos, restringem a liberdade. É a Escola Sem Partido, em nome da moral, dos bons costumes, da família tradicional brasileira, querendo acabar com a suposta “ideologia de gênero” e assim destrói o poder transformador da educação.”[2]

Diante dessa conjuntura, que naquele momento parecia já bastante caótica, diante dos nossos olhos, despertando em nós tanta desesperança, tanta incapacidade de respostas, tanta confusão em nossos dias dentro do programa, algumas perguntas foram cruciais para dá um norte na nossa proposta:

“Como então, a Antropologia deve se comportar diante desses emblemáticos e complexos sistemas, mundos, vidas em ruínas? Pensar e repensar o papel da Antropologia nesse mundo em ruínas, também é repensar nossas próprias práticas de pesquisa, nossos comportamentos, nossos papéis e modos de viver sobre e com ruínas.

Quais os impactos, as contribuições que damos a Antropologia e as sociedades, coletividades com as quais dialogamos e interagimos? Quem de nós, antropólogos e antropólogas, ao olhar do futuro para o hoje, ousará dizer que em meio ao mundo em ruínas, permaneceu estático as dores da vida humana? Quem ousará dizer que forneceu as vidas humanas, a Antropologia, novos meios de sobreviver e resistir em meio aos ataques?

Estamos sendo chamados a experienciar novos movimentos epistemológicos, como o corpo em constante movimento, criando novos passos, danças, como os sons e as músicas que se mesclam em novos ritmos, como as formas de plantar e colher da agricultura, que se reinventa a fim de permanecer nos alimentando sem poluir mundos, corpos, espíritos e vidas humanas e não-humanas.”

Cruzar esses mares turbulentos é a vida em movimento, movimentos em ruínas, ruínas estas que colaboram para os rearranjos das nossas próprias vidas, práticas, relações multiespécies e deslocam políticas locais e globais, mas também tem produzido o fortalecimento dos grupos contra hegemônicos que lutam por justiça social, direito à terra, a suas práticas culturais e aos recursos naturais, como sendo condição fundamental a existência humana e vida no planeta.

Foram dias debatendo em conjunto o que queríamos estabelecer enquanto discussões e mensagens durante os três dias de evento e qual o papel da antropologia neste contexto que estávamos vivendo, principalmente com o governo de extrema direita que começara a governar o nosso país e já estava colocando em cena todo o seu arsenal de ódio e destruição das nossas conquistas mais fundamentais.

O que a gente não imaginava era que três a quatro meses depois, as bombas, as imigrações, poluição da costa nordestina daria lugar a um vírus, e aí as ruínas do antropoceno alavancadas pelos grandes empreendimentos globais, industriais e tecnológicos, estavam agora submetidas a um agente não humano, cuja origem por algum tempo permaneceu inacessível e que semanas mais tardes, começava a nos questionar mais uma vez sobre o nosso papel enquanto pesquisadores, nos obrigando a parar nossas pesquisas, nossas idas e vindas a campo, as nossas atividades em laboratórios, salas de aula, etc. Nos obrigando a fazer movimentos contrários já estabelecidos em nossas costumeiras rotinas.

Quando o Covid-19 começou a se proliferar, estava finalizando a pesquisa de campo que estou desenvolvendo junto ao Rio São Francisco e pensando questões do antropoceno, relações multiespécies, paisagens, perturbações, ruínas, ambientes, praticas e habilidades, humanas e não humanas. Toda a pesquisa foi feita durante os anos de 2018, 2019 e inicio agora de 2020, desde a foz do rio (com menos visitas e estabilidade), até a minha cidade natal (Pão de Açúcar), que fica entre a foz e a hidroelétrica de Xingó, no estado de Alagoas.

Semanas depois, já tendo terminado a pesquisa, em março, estava com meu retorno agendado para Santa Catarina, no dia 20 do mesmo mês, retorno que até o dia de hoje, quando escrevo este relato, não aconteceu, por causa de cancelamentos de voos, remarcação de passagens, também um pouco de medo e insegurança.

Quando o isolamento começou aqui em Alagoas, eu já estava na capital (Maceió), pronto para desembarcar em Florianópolis a fim de concluir a ultima fase do processo de obtenção do doutorado, que é a escrita, qualificação e defesa de tese. Isolado aqui em Maceió, não pude nem ir e nem voltar para a casa dos meus pais, que também se localiza na cidade de Pão de Açúcar, local sede do campo (e lá se vão dois meses). O governo do estado tem estabelecido vários decretos, que entre outras medidas, proíbe a circulação de transportes de passageiros intermunicipais, impossibilitando que eu fizesse e ou ficasse em isolamento social junto dos meus pais.

Entre ficar em casa, com meus irmãos que continuam atuando e trabalhando, um por ser biólogo e trabalhar em uma empresa que presta serviços e vende material para hospitais e clinicas, e a minha irmã, psicóloga que atua na área de atenção e reabilitação a pessoas com necessidades especiais, e ou ficar no Guesb, resolvi me juntar a minha Ialorixá, seus filhos biológicos e mais umas quatro pessoas, na assistência a pessoas em vulnerabilidade social, no entorno do terreiro.

O GUESB, está localizado no bairro do Village Campestre II, situado dentro do que se acostumou chamar de Cidade Universitária, pois a UFAL, tem seu campus sede aqui e ajudou no povoamento da região. O Ilê, possui um instituto chamado INAÊ, que desde a sua fundação, há mais de 25 anos, oferece cursos de capacitação, oficinas para moradores do bairro, além de já ter abrigado uma creche e ser casa de acolhimento para pessoas usuárias de drogas.

Durante a pandemia, recomeçamos a distribuição de sopas e mascaras de pano, duas vezes por semana, sempre as quartas e sábados. Além da distribuição da sopa, conseguimos com a ajuda de instituições parceiras a compra de toneladas de alimentos e produtos de higiene, que deu para produzir mais de 300 cestas básicas e mais de 300 kits de higiene, o que não representa nem a metade das famílias que necessitam e estão precisando serem assistidas, já que muitas pessoas não conseguem trabalhar por conta das medidas impostas pelas autoridades. As cestas básicas foram distribuídas, mas a sensação que ficou naquele momento, era de impotência, cadastramos 300 famílias, mas a todo momento batiam na porta do instituto perguntando se ainda era possível fazer o cadastro ou receber cestas.

Foram dias montando um plano que desse para atender o maior número de famílias possíveis, sem que estas e até a gente mesmo, não corressem os riscos de contrair a doença e o vírus. Usando luvas, mascaras, uma roupa feita a partir do tnt, com álcool em gel e respeitando o distanciamento social, temos feitos todas as ações que estão ao nosso alcance.

Entre uma atividade e outra, ainda tivemos que nos deparar com o desencarne da nossa Avó de Santo, a Mãe de Santo da nossa Ialorixá, que desencarnou aos 104 anos de idade, por causas naturais. Sua passagem foi repentina, estava lucida, conversando com todo mundo e de uma semana para outra foi perdendo suas forças, foi fazendo sua passagem. Seu nome, Mãe Celina de Oxalufã, a mais velha Ialorixá de Alagoas, cuja sua bisavó de Santo teria sido, Tia Marcelina, conhecida por ter sido a Mãe de Santo violentada e morta durante os ataques ocorridos no episodio que ficou conhecido como “Quebra de Xangó de 1912”.

Vó Celina não teve seu funeral como se pede dentro dos preceitos da Umbanda, seu corpo foi velado em apenas três horas, dentro de uma das capelas que ficam em um cemitério particular, do qual só podiam participar 20 pessoas, entre familiares, filhos e filhas de santo, e outros representantes das religiões de matriz africana em Alagoas. Desde então e pelos próximos dias, até 27 de maio, nosso terreiro está de luto, até que se completem os trinta dias do desencarne da nossa Vó. Todos os pejis de orixás estão fechados, suas cortinas estão encobrindo nossas quartinhas, nossos ibás, nossos assentamentos. Nenhuma oferenda pode ser depositada, nenhuma vela pode ser acesa, nenhum atabaque pode fazer ecoar seu som.

Vó Celina nos deixou um patrimônio religioso que vai além dos preceitos e fundamentos transmitidos cotidianamente em cada prática e ritual dentro da Umbanda. Deixou a cargo da nossa Ialorixá, Mãe Neide Oyá d’ Oxum, todo o acervo com imagens, assentamentos, ferramentas e quadros que estavam em sua posse, em seu terreiro, que ela já tinha herdado do seu avô de santo. Então é um acervo que tem mais de 100 anos de história, de ancestralidade. Já tivemos que retirar tudo de dentro do terreiro e trazer para o GUESB, foram três dias indo e voltando várias vezes, trazendo cuidadosamente cada peça, cada objeto, para que em alguns meses, o objetivo de abrir um memorial seja concretizado.

Estou no Guesb desde 2015, e nesses cinco anos, desde que fui escolhido por Oxumarê como seu filho e o responsável por zelar e cuidar da sua tranqueira, nunca pude aprender e experienciar tanta coisa, tantos ensinamentos, tantos ritos e rituais, tantas práticas, como eu tenho tido a possibilidade agora, durante esses dois meses que tenho ficado aqui, no isolamento.

Aqui, é o Tempo Orixá, que dita e comanda nossas ações, nos permite exercitar outros ritmos, outras prioridades, me fazendo entender que nossos caminhos, por mais planejamento que façamos, estão fixados e estabelecidos em comum acordo com o orixá que nos cuida, nos guia e nos protege. O mundo exterior parece ter menos significado estando aqui. Não estou e não estamos desligados cem por cento da realidade que nos cerca e nos remete a este isolamento, mas estou olhando para ela de outro modo, principalmente em relação a muitos dos meus colegas de PPGAS e muitos outros amigos e familiares.

Estou aqui com mais 10 pessoas, cada uma tem sua opinião, cada uma tem seu próprio caminho, sua própria realidade, tem seu próprio mecanismo de defesa e entendimento sobre a pandemia do Covid-19, mas o que nos une enquanto coletivo e pensamento em comum, é que estamos passando por isso, com os olhares e ações voltados para nossos Orixás, para a prática da caridade, para os Pretos Velhos, além das medidas e precauções que tomamos em relação ao vírus.

Aqui é um ambiente bastante grande, com bastantes árvores, algumas frutíferas, bastantes plantas, e eu tenho tido contato bastante particular com elas, com algumas delas. Aprendendo suas funções, aprendendo sobre sua eficácia e em quais rituais e banhos elas podem ser usadas, utilizadas, as quais orixás elas correspondem. Aprender a manipular cada uma é sinal de aquisição de conhecimento e de status dentro do terreiro. Aprender a fazer banhos e chás, compartilhar com os mais velhos e mais novos, é sinal de que há continuidade do que se aprendeu e está pronto para repassar, bem como sinal da sua própria evolução mediúnica.

Os banhos nesse processo de pandemia e isolamento têm servido para reorganizar nossas lutas diárias, lutas cansativas em torno do nosso projeto social, bem como de estabelecer diálogos permanentes com o campo do sagrado, do mais que humano também como forma de proteção e descarrego contra as energias pesadas, contra os fluidos e pensamentos negativos que surgem a partir do estado de pandemia. Os banhos servem de alimento para a fé, para a renovação do nosso espirito e das nossas relações comportamentais.

Durante todo esse período, pássaros, cigarras, gatos, estão sendo companheiros inseparáveis, folhas caem, forram o chão, flores nascem, morrem, abelhas, borboletas, insetos, fazem delas seus alimentos, é o ciclo da vida fazendo e se refazendo a todo instante, nos permitindo entender que é possível que mundos sejam refeitos, que lugares e ambientes sejam repovoados, ganhem vida novamente, que eles e elas podem sim viver sem tanta interferência humana, que eles e elas podem sim nos ensinar a viver em outras frequências, em outros sistemas de existência.

Hoje, domingo, 17 de maio de 2020, passarei a ultima noite aqui no GUESB, pois se eu fiquei aqui até agora, foi também por conta do rituais da tão tradicional feijoada da Vovó Maria Conga. Dá ultima vez que tentei embarcar ainda no começo de abril, fui avisado pela minha Mãe de Santo, que Vovó Maria Conga gostaria muito de contar comigo aqui, nos dias 12 e 13 de maio mesmo que não tivesse a tão aguardada celebração festiva como já era tradição. O que acabou de fato, não acontecendo. E que eu só poderia voltar para Florianópolis depois dessa data. O que está acontecendo agora, talvez enquanto muitos de vocês leem este relato.

Este ano, por conta da pandemia e do luto, a feijoada foi feita presencialmente apenas pelas 11 pessoas que estão aqui isoladas, porém, depois de muito negociar e entender os limites da exposição do ritual, decidimos fazer uma live através do perfil criado no instagram apenas para os filhos e filhas de santo da casa, para que ao menos o rosário dos pretos velhos, que fazemos antes de começar a preparação da feijoada, todos e todas pudessem assistir, o que acabou acontecendo, com pequenas pausas, porque a casa da vovó Maria Conga é o único lugar dentro do terreiro em que nem a internet via wi-fi funciona e nem a internet via operadora de telefonia consegue pegar bem.

Depois do rosário dos Pretos Velhos, então nos dirigimos a cozinha da casa da Vó, onde toda a feijoada é preparada, geralmente fazemos de 12 a 14 panelas de barro, em fogo a lenha, no entanto, este ano só foram feitas três. A feijoada passa a madrugada sendo preparada, às 04:30 da manhã, levantamos a mesa da comida dos Eguns  e ao meio dia, servimos a comida dos Pretos Velhos e Pretas Velhas, e a noite, a gente começa o ritual do ajeum, sentados e sentadas todos e todas ao redor da Vó Maria Conga. Por não poderem entrar no terreiro, alguns filhos e filhas de santo, vieram buscar um pouco da feijoada na porta do terreiro e depois voltaram para suas casas e através de mais uma live, puderam acompanhar o ajeum junto a nós. Foi a ajuda da tecnologia que proporcionou a união do Grupo Espirita Santa Barbara em tempos de distanciamento social, no momento mais esperado do calendário litúrgico do nosso Ilê.

Esses dois meses aqui, diante do isolamento que continua em muitos lugares do país, serviu como rito de passagem, de preparação para as etapas, que serei obrigado a enfrentar a partir de agora. Essa experiência me fortaleceu como humano, como espirito em constante processo de evolução e missão, fortaleceu meu senso de pertencimento ao meu Ilê, a minha ancestralidade, no cultivo da fé, na reordenação dos meus sentimentos, dos meus pensamentos. Serviu de alimento para meu Orí, para compreensão do meu dever longe daqui e quando aqui estiver.

Que os caminhos que traçarei depois daqui, sejam sempre a continuidade do que aqui eu experienciei, plantei e semeei. Ontem, sábado, 16 de maio de 2020, preparei meus últimos três caldeirões de sopa e fiz questão de distribuir, foi meu ultimo rito de passagem, foi o encerramento de mais uma missão dada a mim, pelos orixás.

[1] Doutorando do PPGAS-UFSC, estudante pesquisador membro do CANOA/PPGAS- UFSC; estudante pesquisador colaborador do IBP/ PPGAS- UFSC. Yaó de Oxumarê do GUESB, em Maceió- AL.

[2] Projeto Jornadas Antropológicas 2019.