Sobre a pandemia no Alto Solimões

08/05/2020 - Silvana Teixeira, doutoranda PPGAS/UFAM 

Há cerca de duas semanas, comecei a anotar os nomes dos indígenas mortos pela Covid-19, ou por suspeita dela, que têm sido anunciados em um  grupo de WhatsApp da região do Alto Solimões, do qual faço parte.

O Alto Solimões compreende a região da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. As cidades a que faço referência nesse relato são do lado brasileiro e concentram uma grande população indígena das etnias Ticuna, Kokama, Kambeba, Katukina, Kaixana, Kulina, Mayoruna, Miranha, Kanamari, além dos grupos Matis, Matsés que ficam na região do Vale do Javari, no município de Atalaia do Norte, região onde vivem indígenas isolados.

A maior população é dos Ticuna, com cerca de 45 mil pessoas, distribuídas nos municípios de Tabatinga, Benjamin Constant, Santo Antônio do Içá, Tonantins, São Paulo de Olivença, Amaturá e Fonte Boa.

De Manaus acompanho os acontecimentos na região, através da rede social dos indígenas. Atualmente trabalho na escrita de uma tese de doutorado sobre o Museu Magüta, o museu dos indígenas Ticuna, que fica na cidade de Benjamin Constant. Viajo pra essa região desde o ano de 2010, quando iniciei o trabalho de pesquisa no mestrado, com objetos da cultura material Ticuna.

Narro aqui algumas notícias sobre a situação dos indígenas nessa região, a partir dos relatos que fui acompanhando nessa rede social. O grupo possui 96 participantes com perfis distintos, mas com interesses comuns. Os membros mais ativos são os próprios indígenas, Ticuna, Kokama e Kambeba em maioria, que circulam notícias de seu interesse.

Construo aqui um relato sobre a pandemia, com base nas notícias veiculadas por eles nesse grupo.

No final de fevereiro, ainda não havia nenhuma notícia divulgada sobre o coronavírus. O que circulava no grupo eram fotos de divulgação de obras entregues às comunidades, recebidas com festa e alegria. No dia 20 de fevereiro, alguém divulga o link para o aplicativo do SUS sobre o coronavírus, sem maiores explicações.

No primeiro dia do mês de março, circula um convite para um encontro com jovens, crianças e lideranças, realizadas por uma importante associação de indígenas Ticuna. No final da primeira semana de março, alguém divulga a notícia de confirmação do primeiro caso de Covid-19 no lado peruano da tríplice fronteira.

No grupo, circula o convite para o Pre Foro Social Panamazónico, previsto para os dias 5 e 6 de março no Resguardo indígena San Sebastian de los Lagos perto da cidade de  Letícia, em Colômbia.

No período de 09 a 13 março, circulam os convites de palestras do evento Desenvolvimento Regional sem Fronteiras, com uma agenda em Benjamin Constant, São Paulo de Olivença e Tabatinga.

No dia 13 de março, o governo do Amazonas confirma o primeiro caso de coronavírus no estado. No grupo, começa-se a compartilhar textos sobre o novo coronavírus e o impacto possível nos povos indígenas. Têm início nos municípios da região ações em várias frentes para divulgar informações aos indígenas.

No dia 14 de março, um importante evento reúne centenas de pessoas em um ginásio em Tabatinga, para a formatura de 479 alunos do Curso de qualificação de agentes Indígenas de Saúde e Agentes indígenas de saneamento, para atuar em 237 aldeias, nos 13 polos base da Secretária de Saúde Indígena – SESAI.

No dia 16 de março, uma pessoa do grupo compartilha um alerta para Coronavírus da Mídia Índia a voz dos Povos.  E um arquivo pdf com informações da SESAI sobre o coronavírus e os cuidados necessários.

Novas notas de divulgação de eventos seguem sendo enviadas e demonstram que as entidades seguiam funcionando normalmente. A Universidade Estadual do Amazonas convidava para um lançamento de livro em Tabatinga.

No dia 17 de março, a cidade de Letícia fecha sua fronteira com Tabatinga. O vice reitor da UFAM testa positivo para o novo coronavírus. No grupo, as dúvidas eram sobre se o vice reitor havia participado ou não da formatura dos agentes indígenas. E começam as postagens de reforço para que os indígenas permaneçam nas aldeias. Os planos de contenção das equipes da SESAI já estão sendo implantados, mas pouco se sabe de sua  efetividade e tudo segue a sua rotina de sempre na região, com as pessoas circulando das comunidades para a sede, dos municípios de Tabatinga, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença para vender seus produtos, ou em busca do recebimento de benefícios sociais como aposentadorias e bolsa família, nas agências bancárias.

Em tese, as pessoas devem permanecer em suas comunidades, os templos devem permanecer fechados, mas pouca efetividade surtem essas medidas e vários pastores são contrários ao fechamento das igrejas. As informações contraditórias proliferam nos grupos e as denúncias de que o isolamento social não está sendo cumprido se multiplicam.

Ainda não se falava em contágio no Alto Solimões, apenas em medidas para se proteger do novo coronavírus.

No dia anterior, 16 de março, o prefeito de Manaus, capital do Estado do Amazonas, dava início ao período de isolamento social, suspendendo as atividades nas escolas, e o reitor da Universidade Federal do Amazonas decreta a suspenção das atividades presenciais em todos os campi.

No dia 17 de março, FUNAI, SESAI, CONDISI (Comissão Distrital de Saúde Indígena) e UNIJAVA (União dos Povos do Vale do Javari), divulgam uma resolução conjunta suspendendo todas as atividades de carácter coletivo na região por causa da pandemia.

Em 18 de março, divulgam no grupo que a vigilância sanitária está fazendo triagem no desembarque de passageiros no porto de Amaturá. A orientação era a de que, dentro da comunidade, as pessoas poderiam se reunir, só não podiam aceitar a presença de turistas.

No dia 19 de março, o Amazonas confirma o segundo caso confirmado de coronavírus em Manaus. No mesmo dia, a coordenação da FUNAI reúne-se em Tabatinga e decreta que não haverá atendimento ao público até o dia 23 de março.

O Distrito Sanitário Especial Indígena de Tabatinga e as lideranças já estão mobilizados para tentar informar com palestras e avisos nas comunidades. E o sistema de monitoramento divulga que não há presença de casos de contágio em São Paulo de Olivença.

A notícia de que em Tabatinga havia somente 10 kits de testes para verificação de casos suspeitos causa espanto e medo nas pessoas do grupo. Novas notícias dizem que as pessoas estão sendo testadas no aeroporto, nos portos e na fronteira terrestre e os que passam pela Polícia Federal. Os testes realizados são encaminhados para análise em Manaus, com resultados previstos para estarem prontos em 48 horas. Mas ninguém sabe confirmar quantos testes estão disponíveis. Existe um único laboratório habilitado em Manaus, para onde são enviados os testes de todos os municípios do interior do estado e da capital.

No dia 19 de março, divulgam um aviso do Terminal Ajato, em que a empresa de transporte hidroviário informa que estão suspensas viagens no período de 23.03 a 29.03, mas que tudo será normalizado no dia 30 de março.

O governo do Amazonas decreta, também no dia 19 de março, a suspenção das aulas, das academias de ginástica e dos serviços de transporte fluvial em todos os municípios do estado do Amazonas.

No dia 20 de março, circula uma nota pública da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, cobrando do governo federal a apresentação de um plano de prevenção e atendimento para evitar riscos de contaminação de coronavírus nos territórios indígenas.

Nesse mesmo dia, um indígena Marubo apresentou sintomas da Covid-19 e entrou em quarentena na cidade de Atalaia do Norte. Ele tinha tido contato com turistas estrangeiros na maloca dos indígenas na cidade de Atalaia do Norte. Na UPA, unidade de Pronto Atendimento de Tabatinga foram atendidos 3 casos suspeitos, mas não sabiam como localizar as pessoas na cidade. E começam os avisos de que todos devem ficar em suas casas porque os hospitais não tem condições para realizar atendimento.

No dia 22 de março, pergunto no grupo sobre o número de respiradores; alguém responde que Tabatinga possui 3 respiradores.

O boletim de São Paulo de Olivença informa que existe um caso suspeito. No dia 23 de março, o caso é descartado. Mas a situação do trânsito dos indígenas até as sedes dos municípios da região para comercializar os produtos da roça não foi resolvido pelas autoridades e as pessoas continuam indo até a cidade para vender seus produtos.

No dia 24 de março, notícias de que as populações indígenas do município de Amaturá não estão respeitando o isolamento social e o prefeito da cidade fala a um jornal do estado que está apreensivo com a possível contaminação dos indígenas. As declarações do prefeito são vistas como discriminatórias no grupo, porque os “brancos” também não estão respeitando o isolamento e ficando em suas casas. Por outro lado, a reportagem revela uma realidade: não está havendo isolamento social, apesar dos esforços das equipes que trabalham na saúde indígena. Nesse dia, o boletim de Tabatinga informa que de 10 casos investigados, 9 foram descartados. E no boletim de São Paulo de Olivença nenhum caso é informado. Enquanto em Manaus morre a primeira vítima da Covid-19, o senhor Geraldo Sávio, que fora o primeiro caso registrado no município de Parintins, no baixo Amazonas.

No dia 25 de março, o município de Santo Antônio do Içá registra o seu primeiro caso confirmado para o coronavírus e mais 3 casos suspeitos.

A notícia da chegada do vírus ao Alto Solimões começa a circular.

O vírus teria subido pelo Rio Amazonas, no dia 18 de março, na lancha Cristal, da empresa À Jato. A lancha saiu do porto de Manaus levando o médico do Município de São Paulo de Olivença junto com outros passageiros. Chegando a São Paulo de Olivença, o médico apresentou sintomas e testou positivo para a Covid-19. As pessoas circulavam pedidos no grupo, para que todos os passageiros que viajaram nesse dia, na lancha Cristal, procurassem o posto da vigilância epidemiológica em seus municípios. A medida era difícil de ser alcançada. Na lista de passageiros, só constavam os nomes daqueles que embarcaram em Manaus. Todos os que embarcaram nos municípios que fazem parte do itinerário da lancha não possuíam o registro de seus nomes naquela viagem.

O próprio médico da saúde indígena que havia sido infectado pelo coronavírus resolve divulgar um comunicado informando de sua situação. Calcula que pode ter contraído o vírus durante sua viagem de férias ,aos estados de Santa Catarina e Paraná, ou durante a viagem de lancha até Santo Antônio do Içá. O médico chegou no dia 18 de março ao município e estava assintomático, iniciou atendimento e no dia 19, teve tosse e febre e fez uso de máscara para atender seus pacientes. Entrou em isolamento em seguida e, no dia 25 de março, recebeu a confirmação do teste positivo para coronavírus. O médico havia atendido 8 indígenas da etnia Ticuna. Não foram localizadas todas as pessoas que viajaram junto com o médico na lancha Cristal para que fosse feito o monitoramento.

O pavor se instala nas conversas e vem à tona o medo dos profissionais de saúde que estão desprotegidos e alguém cita a comunidade de Sapotal como sendo um lugar em que estão realizando cultos e que os indígenas dessa comunidade foram impedidos de entrar em uma outra comunidade para realização de cultos religiosos.

Em meio à pandemia, a SESAI anuncia a demissão de todos os antropólogos contratados para auxiliar no sistema de saúde indígena.

No dia 27 de março, são 33 casos em monitoramento em São Paulo de Olivença e 1 caso em investigação. Até o dia 28 de março, não havia nenhum caso confirmado de Covid-19 em indígena em Santo Antônio do Içá.

No dia 28 de março, indígenas do Vale do Javari denunciam a ameaça de missionários contra índios isolados; a sede dos indígenas fora invadida por religiosos norte-americanos que queriam obter permissão de entrada na terra indígena.

No dia 29, denúncias e áudios são divulgados de indígenas que estão contrariando as normas para seguir frequentando os cultos nas igrejas evangélicas e funcionários da saúde que difundem a ideia de que “é apenas uma gripezinha”, levando as pessoas a sair do isolamento social.

Os esforços são muitos, mas muitas são as denúncias de relaxamento do isolamento social nas comunidades. No dia 31 de março, em Tabatinga, já são 17 casos em investigação, 2 em isolamento e 20 que foram descartados. Em Santo Antônio do Içá são 4 casos confirmados, sendo 1 indígena, 50 descartados, 54 suspeitos notificados, 302 casos em monitoramento domiciliar sem sintomas, 5 casos em monitoramento domiciliar com sintomas. Todos querem saber se a indígena contaminada seria moradora da comunidade ou da sede do município. Outros dizem ser uma agente de saúde Kokama; finalmente alguém confirma as informações no grupo, trata-se de uma indígena Kokama da Aldeia São José, agente de saúde. A agente é uma das pessoas que teve contato com o médico diagnosticado com a doença. Estavam sendo monitoradas 15 integrantes da equipe de saúde e 12 pacientes que tiveram contato com o médico infectado.

Em 02 de abril, a situação em Tabatinga parece estar sob controle, com 39 casos descartados e somente 1 suspeito, 1 em investigação, 1 isolamento e 1 sob monitoramento.

Em Tonantins, a situação é outra: são 3 casos confirmados, 3 notificados, 6 descartados e 112 sob investigação.

No dia 04 de abril, sobe para 5 o número de casos confirmados em Santo Antônio do Içá, 2 pacientes internados, 310 em monitoramento sem sintoma, 8 em monitoramento com sintoma.

Em 5 de abril, surgem 5 casos suspeitos em Benjamin Constant.

Em 6 de abril, um boletim do DSEI informa que há somente 2 casos de Covid-19 em indígenas e 10 casos em investigação. O boletim informativo da cidade de Santo Antônio do Içá informa 7 casos confirmados e 277 em monitoramento.

No dia 07 de abril, São Paulo de Olivença confirma 2 casos para a Covid-19 mais 6 sob investigação e 12 em monitoramento.

No 08 de abril, Tabatinga confirma 1 caso para Covid-19, 10 em investigação e 204 em monitoramento.

No dia 09 de abril, noticiam que a primeira indígena infectada foi curada.

No dia 10 de abril, morre em Manaus, Dona Maria Vargas, indígena Kokama, da Aldeia Monte Santo, em São Paulo de Olivença, vítima da Covid-19. Ela estava na capital, havia dois meses, para cuidar da saúde e contraiu a doença enquanto fazia o tratamento.

No dia 11 de abril, a SESAI e o DSEI divulgam nota informando sobre a morte de um indígena Ticuna, de 78 anos de idade, que havia sito transferido para Manaus, no dia 16/03, por UTI aérea para tratar de bloqueio no coração. Em tratamento, passou por três hospitais em Manaus e contraiu a Covid-19.

No dia 13 de abril, já são 10 casos confirmados em Santo Antônio do Içá.

No dia 18 de abril, são 9 casos confirmados em Tabatinga e uma morte.

No dia 22 de abril, morreu em Tabatinga o senhor Abelázio Flores Salvador, importante e antiga liderança do povo Ticuna.

Em 24 de abril, já eram 44 casos confirmados em Tabatinga e 3 mortes de indígenas.

Começam a aparecer questões sobre onde enterrar os indígenas mortos, uma vez que os protocolos para o enterro das vítimas mortas por covid-19 e o local no cemitério de Tabatinga já estavam definidos. Diante da morte dos indígenas, um agente reivindica um espaço separado no cemitério.

No dia 25 de abril, uma pessoa encaminha a informação de que são 61 casos confirmados em Santo Antônio do Içá e em Amaturá são 12 casos.

Em 26 de abril, são 67 casos confirmados em Tabatinga que, no dia seguinte, sobem para 73 casos confirmados de Covid-19. Nesse dia, acontece a primeira morte em Santo Antônio do Içá.

Morre, nesse mesmo dia, o segundo cacique de Sapotal, o senhor Antônio Vilela.

No dia 27, morre Dona Lindalva, irmã mais velha da mãe de um indígena Kokama, que é quem posta as informações. Ela morreu em Manaus, vítima da Covid-19. Acontece a segunda morte em Santo Antônio do Içá. Comentários sobre a comunidade de Betânia que tem infectados e mesmo assim as pessoas seguem fora do isolamento social.

No dia 28 de abril, já são 83 casos confirmados em Tabatinga, 61 em Santo Antônio do Içá, 31 em São Paulo de Olivença, 23 em Benjamin Constant e 18 em Tonantins.

No dia 28 de abril, morre, em Manaus, Aldenor Basques Félix, indígena Ticuna que vivia na comunidade Wotchimaucü, no bairro Cidade de Deus, na capital. Os parentes indígenas da comunidade não sabem dizer se foi Covid-19. Ele morreu sem conseguir ser atendido. Com todos os seus parentes vivendo no Alto Solimões, o grupo recebe muitas mensagens sobre as condições em que se deu sua morte. Aldenor era professor na sua comunidade, desenvolveu trabalho de tradução para a língua Ticuna de textos da exposição Ticuna em dois Tempos, realizada com apoio do Instituto Brasil Plural, pelo MARq Museu de arqueologia e Etnologia da UFSC, em conjunto com o Museu Amazônico da UFAM.

No dia 29 de abril, morre Dona Maria, da Aldeia Umariaçu, mãe de Gelsi, Gelsineia, Ney e outros. Morre também o senhor Agostinho Samias, avô de um agente indígena Kokama. O mesmo agente que reivindicou um espaço separado no cemitério. Conseguiu e seu avô foi enterrado na área reservada para os indígenas.

No dia 01 de maio, morreu o senhor Anselmo Rodrigues Samias. No dia 02 de maio, morreu o senhor Alberto Guerra Samias, da comunidade de Sapotal, conhecido como Tio/vovô Lili, e, no dia 03 de maio, morreu o senhor Idelfonso Tananta de Souza, conhecido como Nego, da comunidade de Sapotal. Monitorado como suspeito, disse que “preferiria morrer em casa onde pudesse se despedir dos filhos e dos familiares”, eram todos familiares daquele agente indígena Kokama, que já havia perdido outros parentes.

A última mensagem de hoje, 03 de maio, no grupo, é de alguém que escreve sobre a tristeza da morte de seis pessoas, mas não diz nem os nomes e nem em qual comunidade.