A importância de criar redes de apoio aos grupos subalternos na pandemia. Entrevista com Silvia Guimarães

31/05/2020 - Por Valentina Nieto

Silvia Guimarães é professora do Departamento de Antropologia da UNB e pesquisadora da Rede Saúde do IBP. Ela coordena junto com o professor Carlos Alexandre Plínio dos Santos o laboratório Matula -Sociabilidades, diferenças e desigualdades-, que reúne um grupo de pesquisadores e estudantes de mestrado, doutorado e graduação da Universidade de Brasília (UnB) que trabalham com grupos indígenas, quilombolas e grupos da periferia de Brasília -raizeiros, benzedeiras, catadoras.  Pensando nas implicações da Covid-19 na vida dos grupos pesquisados e a relação com os serviços de saúde, abriram um perfil de Instagram e Facebook onde divulgam e analisam narrativas de sujeitos indígenas, quilombolas ou dos grupos subalternos. Nestas narrativas eles falam sobre a questão da pandemia, suas vivências, estratégias, dificuldades ou denúncias. Com o intuito de entender mais a fundo a iniciativa, falei com a professora Silvia.

Valentina Nieto: Como surgiu a iniciativa do site em Instagram? e qual é seu propósito?

Silvia Guimarães: Com a chega da Covid-19, sentimos a necessidade de nos reunir num grande projeto em que conseguíssemos mapear as narrativas e as estratégias de cuidado que as comunidades estão fazendo, assim como a maneira como os serviços de saúde estão alcançando, ou não, essas pessoas.  Decidimos colocar estas narrativas num Instagram e Facebook para divulgar, problematizar e denunciar o que está acontecendo, principalmente o fato de que os serviços de saúde não alcançam devidamente essas pessoas.

É importante saber que nessa pandemia toda a estrutura de desigualdade se mostra mais intensamente.  Os vários adoecimentos que eles são acometidos, a falta de acesso a serviço de saúde, a falta de acesso a cuidado, a má alimentação, a expropriação territorial, tudo isso deixa os grupos com os quais trabalhamos ainda mais vulneráveis na pandemia. Ficamos muito incomodados com isso, com o que estava acontecendo pois começamos a receber notícias das regiões, sobre os riscos que significava para eles, muitos manifestaram estar assustados, com medo, lembrando das epidemias ainda presentes na memória. Assim, surgiu essa ideia de reforçar o descaso e denunciar. Concomitante a essas mídias estamos em ações conjuntas com essas comunidades.

Subimos ao Instagram o relato de Vilma Tupiniquim, que é uma enfermeira indígena que trabalha na sua comunidade, na sua aldeia, está muito preocupada sobre como fazer para adequar as práticas de prevenção à realidade de sua comunidade. Além disso o sofrimento mental está se intensificando. Muitos velhos estão relembrando de fatos passados, de outros avanços de epidemias e formas de extermínio que vivenciaram.  Essas memórias estão sendo ativadas agora, causando rupturas diversas neles.

Então, vimos que não dava para ficar ausente nesse momento e que precisávamos nos mobilizar como um coletivo, fazer uma ação de denúncia e reunir material, tentar apoiá-los de alguma maneira e dentro do que antropologia pode fazer. Fazendo essa crítica, imaginando as conversas possíveis com esses povos, os caminhos da comunicação que devem acontecer para que eles sejam escutados, e para advogar favoravelmente a eles. Assim surgiu a ideia deste grande projeto em conjunto para reunir esforços e pensar na saúde pública no Brasil, contextualizando a desigualdade social que se revela mais fortemente sobre os grupos vulneráveis.

Nesse trabalho que começamos a fazer no Instagram, a CONAQ -Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas –  nos chamou para ajudá-los.

Valentina: Qual é o público alvo?

Silvia Guimarães:  O público alvo que queremos atingir é incerto quando se está nessas mídias, mas seria importante ter organizações da sociedade civil, indígenas, quilombolas, profissionais de saúde, gestores, estudantes, pesquisadores.

Valentina Nieto: Qual é a importância da etnografia neste momento?

Silvia Guimarães: Eu penso que a etnografia tem um papel muito importante na hora de fazer uma crítica a determinados contextos. Por exemplo quando os serviços de saúde são racistas, quando há uma desigualdade maior entre os grupos populacionais, entre segmentos da população que apresentam uma maior mortalidade infantil como os povos indígenas, ou a mortalidade maior de jovens na população negra.  A gente consegue entender melhor esses contextos com o trabalho etnográfico. E também aprofundar na dimensão da vida de cada pessoa que a frieza dos números às vezes pode não transparecer.

Também é possível compreender que leituras universais e soluções universais podem  ampliar o sofrimento, como, por exemplo, exigir que todos façam as práticas de prevenção a Covid-19 que se revela de um mundo branco, classe média- alta de se cuidar. E diante desse contexto, os povos indígenas e quilombolas estão se reinventando, buscando alternativas próprias e denunciando um Estado que não se propõe a dialogar ou nega a existência de uma pandemia.

Nos relatos que temos, há indígenas que relembram os avisos que sempre deram sobre essa crise que está acontecendo. Eles dizem que sempre nos avisaram que os brancos não sabem manter relações com outros, relações éticas e de respeito com os diversos seres que habitam o mundo.

Aí há uma potência das epistemologias indígenas, essas outras ciências, modos de conhecer o mundo, que somam com avisos de outros cientistas, ambientalistas, pessoas que trabalham com mudança climática, biólogos, os quais também já vislumbravam sobre esse acontecimento. No entanto, esses cientistas (indígenas ou não), não estão no grupo de decisões e elaborações de políticas. Estes saberes são negados na hora de tomar decisões políticas.

Ao mesmo tempo, agora esses indígenas estão criando estratégias locais de cuidado e em uma realidade de privação de serviços públicos de saúde. Como alguns se localizam nos rincões do Brasil, eles serão os últimos a acessarem as UTIs. E com essas estratégias eles estão pensando em como se cuidar preventivamente. A principal opção é o isolamento, uma técnica que eles dominam historicamente.

Só que eles precisam que os serviços de saúde façam sua parte, porque eles continuam no processo de adoecimento de outras enfermidades. Em áreas indígenas e quilombolas, o serviço de saúde precisa pensar em planos de contingência, precisam pensar em como os profissionais de saúde devem atuar e se proteger e proteger uma comunidade de contágio, como entrar em área, pensar como será removido e devolvido o indígena de um local distante. Então eles precisam dessa articulação, de que o direito a saúde chegue a eles e de uma forma segura.

A proposta é relatar essas estratégias, essas leituras dessas outras ciências e as estratégias que eles estão criando, assim como fazer denúncias ao serviço de saúde que parece que está meio paralisado.  Em alguns momentos a gente vê um jogo político de acusação em que o governo federal não assume suas responsabilidades e culpa a outros.

Valentina:  Qual tem sido o impacto da relação com as cidades?

Silvia Guimarães: No Brasil, muitos indígenas e quilombolas precisam se deslocar para as cidades, locais centrais do contágio.  Há serviços públicos que deveriam apoiá-los. E eles vão continuar vindo para as cidades, porque além de terem que receber pagamentos e auxílios, eles continuam adoecendo de malária, pneumonia e precisam realizar alguns tratamentos nas cidades. A pergunta é o serviço de saúde se preparou para isso?

Vivemos em um Estado que se revela como genocida sendo assim precisamos denunciar e reunir pessoas em uma rede de apoio.

Esses coletivos estão sempre em alerta diante do processo de colonização, essa é mais uma frene que enfrentam.