A fonte do poder dos grupos indígenas provém do TERRITÓRIO, com maiúscula

20/05/2020 - Juan Alvaro Echeverri, antropólogo e professor da Universidad Nacional de Colombia

Na Colômbia, até 13 de maio de 2020 foram contabilizados 169 casos de contágios e 8 mortes por Covid-19 na população indígena, pertencentes a 13 povos (Tikuna, Tariano, Miraña, Inga, Yucuna, Ocaina, Mokana, Zenú, Yukpa, U´wa, Wayyu, Pastos e Yanaconas). Amazonas é o  Departamento (Estado) com mais casos do coronavírus por milhão de habitantes e a capital Letícia, na fronteira com o Brasil e Peru o foco da pandemia. En Leticia há dois centros de saúde (o hospital público e uma clinica privada), não há leitos de UTI e só 5 respiradores (o único gerador de oxigênio que tinha no hospital público não funciona). A população indígena é a mais afetada, dado que representa 70% da população do Departamento.

Juan Alvaro Echeverri, antropólogo e professor da Universidad Nacional de Colombia, foi convidado para falar no lançamento da campanha “Por la salud de los pueblos indígenas amazónicos“, organizada pela Organización de los Pueblos Indígenas de la Amazonia Colombiana (OPIAC) no dia 13 de maio. Na sua intervenção, retratou o risco cultural e humano que significa a ameaça da pandemia e chamou a atenção para a importância do TERRITÓRIO, como um eixo fundamental de poder para os povos indígenas no atual contexto. Abaixo transcrevemos e traduzimos a fala de Juan Alvaro.

Quarta-feira, 13 de maio de 2020

O Rio Amazonas uma vez mais tem sido a rota de entrada das doenças na amazônia colombiana. Desde os primeiros séculos do contato europeu, foi pelo curso do grande Rio que as ondas epidêmicas arrasaram os povos que prosperavam nas suas margens, como os Omagua, Yurimagua e muitos outros. Desde o leito do Rio, as epidemias foram se expandindo aos territórios dos interflúvios por meio do comércio de ferramentas e das atividades dos missioneiros. Atualmente, convivem com a ameaça da repetição da história. Até esse momento, 13 de maio, o sul do  Trapézio Amazonico colombiano, particularmente a cidade de Leticia, é o lugar mais afetado, com um índice de 15.412 casos por milhão de habitantes, ou seja, 67 vezes maior que a média nacional (228 casos por milhão). Em outras zonas da Amazônia colombiana, os registros são baixos, porém os riscos são altos devido à situação fronteiriça com muitos territórios e povos. Brasil, Perú e Equador são três países fortemente afetados pela pandemia, ameaçando sua expansão para outras regiões majoritarimente indígenas da Amazônia colombiana.

Talvez, aos olhos da maioria da sociedade colombiana, o conjunto dos departamentos amazônicos representa uma porcentagem muito menor quando comparado ao resto da população do país. Entretanto, os departamentos amazônicos são incomparáveis ao resto do país quando se considera sua riqueza cultural e linguística. Por dar algunas cifras,  na Amazônia colombiana falam-se 64 línguas de 17 famílias linguísticas, sendo as mais faladas as línguas Tikuna e Murui, ambas no departamento do Amazonas. Esta diversidade linguística é a que sobreviveu a séculos de embates epidemiológicos (covid 19 não é o primeiro), de atividades extrativistas violentas, da evangelização e espanholização forçadas, da discriminação e do abandono estatal. Não se trata somente de diversidade linguística, os povos amazônicos são os herdeiros de uma verdadeira civilização de mais de 12.000 anos, que soube viver e relacionar-se com um meio natural que a sociedade majoritária não conhece, não entende e vem destruindo por meio da extração de madeira e da exploração da mineração e do petróleo. Esta herança civilizatória, que tem sido menosprezada e folclorizada pela sociedade colombiana, revela-se em seus sistemas de produção diversificados e itinerantes que conduziram à domesticação de uma grande variedade de plantas e frutas, à extraordinária arte oral, à natureza pluriativa, e ao sentido de vida guiado pelos imperativos da boa socialidade e arte do bem viver. Sobretudo uma sociedade com um profundo sentido da espiritualidade.

Os indígenas têm sido representados pelo Estado e por muitas agências de auxílio como pobres e ignorantes. Como são vistos como pobres, é necessário levar a eles projetos de desenvolvimemto; como são considerados ignorantes, é preciso dar a eles capacitação. Eu creio que esta pandemia deve nos fazer refletir sobre nossas relações com o meio ambiente e com nosso apreço à diversidade cultural e linguística. O que chamamos de “riqueza” não parece ser outra coisa que uma ilusão muito frágil. Os indígenas não são pobres nem ignorantes. Ao contrário! Eu creio que nesta pandemia há uma lição para os indígenas e também para as organizações políticas que os representam. Nas últimas décadas, houve uma crescente migração de indígenas dos territórios para as cidades, em busca de serviços de educação, saúde, acesso a recursos financeiros e a um aparente bem estar. Porém, são essas cidades que antes assumíamos como centros de riqueza e que agora são as principais fontes de risco e insegurança. Não é casual que a cidade de Leticia seja o foco inicial da pandemia na Amazônia colombiana. Os indígenas na cidade e sua periferia são os mais vulneráveis. Mas essa riqueza cultural que falava antes é também seu grande poder, e a fonte desse poder provém do TERRITÓRIO. Os indígenas que têm o conhecimento e a capacidade para viver do território, para cultivar os alimentos, para adquirir proteína do meio sem violentá-la, para dialogar com a palavra e os cantos com os donos do território, e inclusive para curar as doenças com o conhecimento dos ciclos estacionais, são os que sobreviverão às crises do capitalismo, que sem dúvida seguirão acontecendo. Esta pandemia e as próximas crises nos mostrarão a extrema fragilidade das seguranças que os habitantes urbanos dão por certas: energia, comunicações, abastecimento de alimentos e de água. Aqueles que pensávamos serem os povos mais atrasados e que necessitavam desenvolver-se serão os povos mais avançados, porque conhecem seu território e têm os instrumentos culturais para viver dele. Isto é autonomia territorial.

De fato, em cada comunidade, maloca e lar, os indígenas, mestiços, ribeirinhos, caboclos têm começado a mostrar seu conhecimento das plantas, suas redes de solidariedade, seus protestos e defesas, frente a um sistema de saúde dominado por hábitos de corrupção e ineficiência. São para essas iniciativas locais que o apoio da organização e seus aliados devem debruçar-se em primeiro lugar.

Com esta campanha que está lançando a OPIAC, acompanhada de outras instituições, não se trata somente de dar uma ajuda “humanitária” a uns pobres. Creio que aqui a aposta é maior e é significante para todos nós. Nesta situação de perigo e de ameaça à vida dos povos amazônicos está também em jogo proteger um conhecimento que é para a sobrevivência da humanidade.