Histórias micro de uma epidemia esquecida. Entrevista com Raquel Lustosa Alves e Flávia Lima

04/09/2020 - Por Valentina Nieto

Flávia Lima é jornalista de comunicação pública na EBC e especialista em saúde coletiva pela FIOCRUZ e Raquel Lustosa é mestre em antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco e graduada em antropologia pela universidade de Brasília.   As duas fazem parte da equipe de pesquisa coordenada pela antropóloga Soraya Fleischer, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília e pesquisadora do IBP. Recentemente foi publicado o livro “Micro Contribuições Da Antropologia”[1], organizado por Flavia Lima e Soraya Fleischer, que reúne onze capítulos, elaborados por diversas pesquisadoras, definidos a partir das histórias mais frequentes contadas pelas mães das crianças com microcefalia: mulheres, homens, crianças, doutores, medicamentos, escolas, transportes, dinheiros, benefícios, mídias e ciências.  Este livro é o resultado da pesquisa “Microcefalia, deficiência e cuidados: Um estudo antropológico sobre os impactos da síndrome congênita do vírus Zika no estado de Pernambuco”, desenhado em 2015 pela professora Soraya em parceria com a professora Rosamaria Carneiro, desde que começaram a circular as notícias sobre as consequências da epidemia do vírus Zika na saúde de fetos, bebês, adultos e idosos.  A pesquisa começou em 2016, e se manteve até 2019.  O livro que está escrito numa linguagem acessível, é dirigido a um público amplo, principalmente às mães e famílias de crianças com microcefalia, e é um testemunho das consequências de uma epidemia que já estava sendo esquecida. Sendo assim, chega num importante momento, de auge da epidemia da Covid-19, para reforçar o compromisso de que as histórias daquelas pessoas que vivem com a consequência de outra epidemia não podem ser esquecidas.  O livro pode ser encontrado no site do Departamento de Antropologia da UnB:

Flávia Lima: Por questões pessoais da vida, pelo adoecimento da minha irmã, acabei me interessando pela área da saúde e fiz uma especialização em saúde coletiva na FIOCRUZ. Em 2019 entrei no grupo de pesquisa do Zika como jornalista e bolsista de auxilio técnico do CNPq. Meu papel era trabalhar no blog do grupo de pesquisa “Microhistórias”, que reúne histórias dessas mães, e fazer um diálogo com a mídia.   Lendo os diários de campo da pesquisa coletiva, fui observando que para as mães, a mídia era um assunto importante: elas se sentiam esquecidas pela mídia. Por isso, comecei a pensar nessa interseção: como elas falavam da mídia, como se sentiam esquecidas e ao mesmo tempo procuravam a mídia para relatar a falta de medicamentos, a falta de vagas na escola e buscavam criar suas próprias narrativas, criando canais de Youtube e páginas de Instagram para contar suas histórias e experiências com as crianças micro.

Raquel Lustosa: Recém terminei a graduação em 2017, me mudei para Recife onde participei da segunda temporada de pesquisa.  Esta pesquisa teve 6 ou 7 temporadas de campo entre 2016 e 2019, com visitas semestrais e acompanhamento de um grupo de mulheres, mães de crianças com a Síndrome Congênita da Zika, que é popularmente conhecido como a “micro”, que foi considerado o primeiro sintoma.   A proposta da pesquisa foi a de fazer um retrato das consequências da Zika nestas famílias, focando na realidade dessas mulheres que estavam buscando assegurar direitos para seus filhos.  Um dos resultados foi esse livro, no qual buscamos ter uma linguagem mais accessível, até porque é uma pesquisa feita por mulheres que conheceram outras mulheres com as situações mais diversas e com histórias de muitas dificuldades para ter seus direitos assegurados, tanto na saúde, quanto na ocupação de uma vaga na escola. Elas são mulheres que carregam uma luta anticapacitista.  A ideia de Soraya foi a de que o livro atingisse esse público, que as mulheres se lessem e sentissem a representatividade de suas histórias. Além disso, também pensando na sua circulação entre as gestoras públicas e em estender o seu alcance para outros olhares, para outros públicos.

Valentina: Como funciona a metodologia coletiva com a que trabalha a professora Soraya?

Raquel: Soraya tem essa marca na trajetória dela, na qual há uma interação muito horizontal e muito menos hierárquica com as/os estudantes de graduação, da pós-graduação, nós nos lemos o tempo inteiro.  Nesta pesquisa alguns pesquisadores ficavam em Brasília e outras iam fazer trabalho de campo em Recife.  Em campo, nós ficávamos juntas, acompanhávamos várias mulheres nas visitas a várias instituições, e voltávamos para casa para escrever o diário de campo. Tínhamos o olhar coletivo, uma contribuição de diversos olhares. O diário, no seu total, acho que ultrapassa umas 1800 páginas, ao longo destas 6 temporadas.  Compartilhávamos esses diários que fizeram parte da produção de cada uma, desde artigos acadêmicos, textos para o blog “Microhistórias” [2], a dissertações – inclusive a minha.  Eram diários de campo coletivizados que cada uma lia, incluindo aquelas que não foram a campo. Então, a estratégia era incentivar essa produção mais coletiva.

Flávia: Por exemplo, eu não fui a campo.  Mas todas líamos esses diários ou fazíamos leituras coletivas. Isto é realmente uma metodologia de grande riqueza, pois implica fazer uma leitura responsável.  Assim o trabalho coletivo perpassa todo o processo da pesquisa, desde o trabalho de campo até a leitura, a  escrita  de textos e a elaboração das micro histórias e dos capítulos do livro.

Valentina: uma pesquisa feita principalmente por mulheres?

Raquel: Algo muito forte da pesquisa e do livro é essa dimensão gritante de gênero. Nós viemos de um grupo de pesquisadoras mulheres e vimos que a resposta à epidemia da Zika foi formada principalmente por mulheres. Tanto as mulheres protagonistas que tiveram crianças, as mulheres cuidadoras que reivindicaram direitos, que construíram Ongs, que lidaram com gestores e gestoras, assim como as terapeutas, fonoaudiólogas, professoras auxiliares na educação, que são majoritariamente mulheres. Essa resposta de cuidado passa pelo gênero.

Valentina: Parece-me que na estrutura escrita e no formato do livro vocês procuraram ter essa importante dimensão de cuidado que permeia a pesquisa.

Flávia: Foi um incentivo grande de Soraya. Lembro que a primeira vez que falamos do livro como produto final da pesquisa, uma devolução da pesquisa para essas mães também, pensamos em partir das micro histórias que no blog são histórias pequenas, de uma ou duas páginas, e aumentar um pouco para o livro e fazer capítulos curtos, que fossem fáceis de ler, de umas 8 páginas , para que ele ficasse um livro com capítulos mais curtos e trazendo também as  histórias das pessoas.   Não queríamos uma linguagem muito teórica, a gente queria contar as histórias dessas pessoas, até para elas lerem suas próprias histórias.    O livro tem onze capítulos, divididos por temas, e cada tema foi definido pelas histórias mais contadas por essas mulheres ao longo dos 4 anos de pesquisa.  Cada autora escolheu o tema com o qual se identificava, eu por exemplo escrevi sobre as mídias, que era um tema que me tocava, me afetava e que chamou minha atenção quando lia os diários de campo. No lançamento do livro Soraya disse: “são vários retratos de uma epidemia e suas consequências.”

Na versão impressa, o livro é pequeno, não só para rimar com o título “micro”,  mas também pensado para seja fácil de carregar na bolsa das mulheres.  Pensamos também numa fonte agradável, numa diagramação bonita. O livro todo é pensado para  chegar a um público amplo. Essas mulheres vivem há quatro anos as consequências de uma epidemia e agora elas estão vivendo uma nova pandemia.

É um momento muito importante para que essas histórias sejam divulgadas e não sejam esquecidas.

Valentina: Como é a relação das pesquisadoras com essas mulheres?

Raquel: Eu acho que podemos começar falando sobre a grande participação das mulheres no lançamento do livro, o que mostra como é a nossa relação com elas.  Outras não puderam participar, pois sabemos que na pandemia há uma sobrecarga nas tarefas de cuidado das mulheres.  Nós mantemos o contato com elas pelas redes sociais, pelo “zap”.

Flávia: Foi muito importante a participação delas no lançamento do livro, pois este foi pensado como uma devolução de pesquisa para elas.

Para mim, que não tive a oportunidade de conhecer as mulheres pessoalmente, foi muito emocionante vê-las falando de sua relação com as pesquisadoras. Nisso há uma grande diferença entre o jornalismo e a antropologia, pois a diferentemente do jornalismo, que também conta histórias, a antropologia consegue ter essa continuidade de vínculo com as pessoas. As pesquisadoras estiveram com elas desde 2016, acompanharam elas no cuidado dos filhos, como elas aprenderam a instrumentalizar a mídia para lutar por seus direitos, viram as crianças crescendo, fazendo as terapias, vendo como os desafios foram se transformando em outros.

Raquel: Essa continuidade no acompanhamento do mesmo grupo de mulheres na pesquisa é importante para a confiança delas conosco. Nesse universo em que muitos pesquisadores chegaram. Temos casos de mulheres que só conseguiram a consulta porque o médico queria realizar uma pesquisa nesse momento.  Isso diminuiu bastante, e hoje essas mulheres se sentem abandonadas.

Valentina: Há uma diferenciação social nos efeitos da epidemia do Zika?

Raquel: A gente tem algo recente na literatura brasileira. O termo racismo ambiental surgiu nos Estados Unidos e funciona no caso da Zika, pois fala dessa desigualdade de infraestrutura que permite que um grupo especifico, que é racial e de classe, sobreviva melhor. Tem a ver com a política da morte.   O vírus da Zika atinge mais facilmente pessoas em situações de vulnerabilidade e a gente sabe quem são essas pessoas, no caso da Zika basicamente mulheres negras, que moram em lugares com pouco saneamento básico ou inexistente, que é onde o mosquito aedes aegypti, se prolifera mais facilmente.  Porém, quando perguntamos pelas mulheres que tem mais acesso, as mulheres das elites, não as encontramos nos serviços públicos.  Mas as lideranças, ou outras mulheres, mencionam que essas mulheres, ou montaram uma UTI em casa, um home care, ou terceirizaram e tem outras redes de cuidado, ou inclusive tiveram mais segurança na questão do aborto, que é um debate que a Zika gera, sobre a questão dos direitos reprodutivos.

Valentina: Quais efeitos tem na vida destas famílias a atual pandemia de corona vírus?

Raquel: Atualmente eu estou trabalhando na “Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero” numa pesquisa sobre as consequências da Zika e a articulação das mulheres no zap desde 2016, então eu acabo tendo esse contato para saber como as famílias estão. Começando pelo fato de que as crianças  não são consideradas grupo de risco pela narrativa oficial. A gente escuta que são os idosos, que são as pessoas com comorbidades… mas em nenhum momento se fala das pessoas com deficiência, em nenhum momento se contabiliza a morte dessa pessoas que estão numa situação de mais  vulnerabilidade.  No caso das crianças com a Síndrome Congênita da Zika, elas  têm o quadro de saúde “imuno-comprometido”. Eles nascem com a microcefalia, que é sintoma de maior destaque, mas elas têm uma predisposição a dificuldades respiratórias.  O que acontece é que as mães ficam muito mais apreensivas nessa época, elas estão lidando com a ansiedade, com o medo, o pânico da possibilidade dessas crianças contraírem o vírus, pois a gente sabe que não tem isolamento total.  Primeiro, essas mulheres moram com outras pessoas, ás vezes o companheiro precisa trabalhar ou não tem esse privilégio do teletrabalho ou o trabalho home office. Então eles têm contato com outras pessoas, agravando assim o medo que tem essas mães.  As dificuldades em relação ao atendimento também se intensificam, porque essas crianças passam a não frequentar mais a rotina intensa de terapia semanal, terapia ocupacional, hidroterapia, fisioterapia. Então essas crianças, como o universo infantil geral,  ficam muito estressadas. E como muitas mães tem relatado, elas correm o risco de regredir o desenvolvimento que tinham conseguido, porque a estimulação faz com que essas crianças tenham uma resposta de melhora no organismo.  Com a falta dessas terapias, elas estão muito estressadas, aumentando as crise convulsivas, a bronco espiração, sintomas que lembram muitos os primeiros anos, quando as mães estavam tentando acertar quais medicamentos eram melhores, quais terapias funcionavam mais, quais profissionais escolher. Só que com a pandemia tudo pára e vem essa ideia de regressão, não só no desenvolvimento da criança, mas também de perda de direitos, porque há muitos relatos que tem muito medicamento faltando nas farmácias do Estado. Na pandemia isso se intensifica porque elas não conseguem acessar aos remédios e com a escassez financeira de recursos, é difícil comprar esses medicamentos.

E a gente percebe uma dificuldade de conseguir a Renda Emergencial[3]. Algo muito confuso para essas famílias, pois muitas não foram contempladas. É muito perversa a forma em que tem operado a renda emergencial na realidade de essas famílias que estão vivendo essa intensificação de desigualdade social.

E algo bastante problemático e triste para essas famílias, pois elas estão cada vez mais perdendo os direitos, se sentem voltando no tempo, lembrando de como foi o início da epidemia.  Se nesses quatro anos elas lutaram para acessar e assegurar alguns direitos que deveriam ser básicos para as pessoas com deficiência, mas que elas tiveram que lutar e correr atrás e se articular com uma série de agentes para poder assegurar esses direitos e, agora, onde estão esses direitos. Estamos assistindo uma fase bastante difícil de recessão pelo governo atual.

Então, há um sofrimento por conta de estresse, da aparição de novos sintomas ou a aparição de sintomas antigos. Assim se a gente pensa muna estratégia para enfrentar a pandemia, temos que pensar na telesaúde accessível a todos, assegurar que elas vão ter receita, vão ter uma consulta com o “neuro”, que vão ter um atendimento. Claro, é diferente de um atendimento presencial, mas ao menos, pode ser minimamente garantido. Isto não somente para as crianças, mas para as mães, que precisam terapias psicossociais pois elas estão vivendo uma fase de mais sobrecarga e de mais ansiedade, sofrendo muito com esse cenário atual.  Então, temos que ter um olhar direcionado e articulado, entre o sistema de saúde, a assistência social e o poder público, não somente para essas mulheres e essas crianças, mas para, de modo geral, todas as pessoas com deficiência e para quem delas cuidam.

É preciso que elas façam parte do grupo de risco, pois lembrando do que aconteceu com a vacina do H1N1, as crianças com deficiência não foram consideradas o primeiro grupo da vacina. Então, foi uma luta das Ong para lograr que essas crianças fossemvacinadas pelo  H1N1, por conta dessas inúmeras dificuldades respiratórias e por conta desse quadro de imunocomprometimento.

Valentina: Como se organizam as mulheres para fazer frente aos bloqueios institucionais?

Raquel: Elas estão dentro de ONGs de diversas regiões. Em Pernambuco, existe a União De Mães De Anjos que surgiu em 2015, especificamente para as crianças com microcefalia.  Mas antes disso, essas mães e famílias foram acolhidas pela AMAR – Aliança de Mães e Famílias Raras . Mais tarde, foi criada uma outra Ong, só para as mães da micro, na época em que tiveram muitos casos (2015 e 2016). Em 2019 teve registro de novas crianças, um registro menor ao de anos atrás.

Essas associações são muito importantes para a articulação entre as mães, pois se faltam medicamentos, as Associação podem arrumar uma maneira de conseguí-los. Agora, por causa da recessão econômica, as Ongs estão tendo dificuldades para receber doações, que vêm diminuindo com o tempo. É tudo muito crítico.

Além dessas organizações, entre as mães há uma organização solidária, grupos de zap, formas em que buscam caminhos para cobrir a lacuna deixada pelo estado.  Essas redes vêm sendo fortalecidas ao longo desses quatro anos.

Flávia: Chamam muito a atenção nas histórias das mães as formas pelas quais elas foram se fortalecendo, buscando conhecimento umas com as outras, como foram dividindo o remédio, fazendo doação, compartilhando experiências, terapias que funcionavam, histórias de médicos que eram bons, ou não eram bons, lugares para ir e buscar doações.  Não só a ONG em si, se não todas as redes de apoio pelo zap, pelos grupos de mães é muito importante.  Por exemplo, na questão da mídia, elas conseguiram pautar a imprensa na luta pelos seus direitos.

Valentina: Qual a importância da divulgação destas histórias?

Flávia: No início a mídia usava muito a imagem da cabecinha dessas crianças, tanto que acredito que essa imagem simbolizou a epidemia. Aos poucos, a vida dessas pessoas foram entrando numa nova rotina e perdendo o destaque na mídia. Outros acontecimentos foram se impondo no país e ocupando mais espaço nos jornais. As mães de micro foram se sentindo esquecidas. Mas as consequências da epidemia do vírus zika ainda existem, estão no cotidiano da vida dessas famílias.

Por isso, é importante manter essas histórias sempre vivas, pois essas mulheres sofrem as consequências de uma epidemia e vem lutando nesses quatro anos pelos direitos. Não podemos esquecer elas, nem as crianças.

Raquel: A pandemia da Covid-19 vai deixar consequências para muitas pessoas e podemos aprender com o que aconteceu com a Zika.

[1] A versão e-book pode ser baixada de forma gratuita no link http://www.dan.unb.br/images/E-Books/2020_FLEISCHER_LIMA_Micro.pdf

[2] https://microhistorias.wixsite.com/microhistorias

[3] https://anis.org.br/renda-emergencial-relatos-de-mulheres-em-tempos-de-covid-19/