Antropologia em tempo real: urgências etnográficas na pandemia

Sônia Weidner Maluf, UFSC/UFPB, coordenadora executiva do IBP [1]

Boa tarde a todas e todos que estão assistindo. Queria começar agradecendo à profa. Isabel de Rose e à coordenação do PPGAS, professora Débora Allebrant em especial, pelo convite para esta aula inaugural. Eu fiquei feliz com o convite e ao mesmo tempo apreensiva com a ideia de dar aula pelo Instagram – eu espero que a nossa conexão funcione e que consigamos ficar ligadas até o final.

Mas o tempo é curto, então vamos lá. Esta não é uma aula como as outras a que eu estou acostumada a dar na antropologia. Não só por ser uma live no instagram, mas principalmente porque ela tem como objeto um acontecimento que atinge tanto os nossos sujeitos de pesquisa quanto nós, antropólogas e antropólogos. E ela ocorre em meio a esse acontecimento. De certo modo a gente pode pensar este momento a partir da noção de uma comunidade de destino em que a alteridade, tão central para pensar a teoria e a prática antropológicas, se dissolve aparentemente num grande comum: que é essa pandemia. E digo aparentemente porque a pandemia que atinge a população humana do planeta não atinge do mesmo modo; a quarentena e o isolamento social não acontecem da mesma maneira, as pessoas que adoecem não adoecem do mesmo modo, não são tratadas do mesmo modo e não morrem do mesmo modo. A gente pode dizer então com tranquilidade[2] que a Pandemia de Covid-19 é eminentemente social, tanto nos seus efeitos sobre a vida e a morte de pessoas, quanto sobre as relações sociais, as subjetividades e os modos de vida. Não são apenas nossos frágeis sistemas de saúde que uma epidemia desse porte coloca em evidencia, mas também as enormes desigualdades sociais.

Mas o vírus está aí – e ele é o nosso em comum neste momento.

O título desta aula fala em tempo real e fala em urgência. A questão do tempo e das temporalidades, fatores fundamentais numa situação de emergência sanitária como a que estamos vivendo, se torna importante para se pensar sobre o que pode a antropologia neste contexto e diante da pandemia. Nós estamos lidando com diferentes regimes de temporalidade, que vão aparecer na velocidade de expansão do contágio, na velocidade e urgência das respostas sanitárias e de saúde pública necessárias, e também na velocidade com que espaços, blogs, sites, seminários, publicações, dossiês de revistas e até disciplinas de antropologia foram criados para falar sobre a pandemia. Até o ritmo e procedimentos de publicação acabam se suspendendo nesse momento, inclusive para as ciências médicas e biológicas, como a gente pode ver no blog da The Lancet por exemplo, que é uma revista científica de medicina. Artigos sobre experimentos com medicamentos, cuidados, sintomas, tempo de vida do vírus no ambiente tem sido publicados em regime de urgência também, para facilitar a troca de informações e a sua circulação rápida no meio científico.

O tempo das respostas (da análise, da compreensão e da ação) se confunde com o tempo da experiência. E o tempo da experiência é também o tempo dos afetos. A tristeza pelas perdas e o medo do indeterminado, a incerteza, o luto, a culpa e a solidão atravessam as várias populações, regiões e países. Tristeza e medo fazem parte da experiência da doença provocada por um agente com o qual ainda não sabemos muito bem como lidar. Mas no caso da experiência brasileira da pandemia, existe um fator a mais, que é  a outra crise: ter lidar com um governo que não governa, que não só desdenha da epidemia e das mortes que crescem a cada dia, mas, pior,  boicota as medidas de prevenção, de isolamento e tratamento tomadas pelos governos estaduais e municipais.

Além de estar indo na contramão de muitos países, que, neste momento de crise, aumentaram os investimentos do Estado (não só em saúde), no Brasil a pandemia está sendo usada como pretexto para fazer passar o programa de destruição de direitos do governo federal. Isso não é obra exclusiva de Bolsonaro, mas também das forças econômicas que o colocaram no governo: empresários e banqueiros para quem a tragédia é mais uma oportunidade de negócios– seguindo um dos mais caros princípios do capitalismo do desastre[3], que se utiliza da crise e da tragédia para se renovar e reproduzir. Tragédia is business, diria Milton Friedman, o guru de Paulo Guedes. Ontem no grupo de empresários que acompanhou Bolsonaro para pressionar o STF tomar medidas contra o isolamento, estava uma representante da indústria farmacêutica brasileira (incluindo 51 laboratórios) – desrespeitando orientações da própria OMS. Falaram em “morte de CNPJ”, num escracho absoluto sobre as nove mil mortes ocorridas até o dia de hoje[4]. Não é só uma metáfora infeliz ou fora de lugar, é o mundo real do neoliberalismo mais obsceno.

Assim, a situação brasileira traz um afeto a mais, que é a raiva. Nuno Ramos escreveu na FSP domingo passado: “Estou exausto de raiva!”. Estamos todas exaustas de raiva. E esses afetos de medo, tristeza e raiva não precisam ser suspensos ou deixar de existir na hora de escrever um artigo ou de dar uma aula. É preciso mais que nunca reconhecer a potência do afeto e o quanto ele pode nos ajudar a entender a experiência no tempo de seu acontecimento. No tempo real.

Então, a necessidade de falar sobre a pandemia acaba tendo um sentido duplo: de um lado, a óbvia necessidade social de gestão da crise e de enfrentamento ao vírus e de pensar quais são os aportes da antropologia no esforço científico mais geral; de outro lado, a necessidade que a gente poderia chamar de ética, moral ou política, de tentar dar algum sentido ao que estamos vivendo, uma necessidade que é mobilizada pelos afetos, pelas emoções desencadeados pela proximidade do adoecimento, da morte, mas também do caos existencial de todo um país.

Nesta aula eu vou discutir algumas questões que a pandemia trouxe para a antropologia, tanto em relação aos impactos do isolamento sobre a pesquisa etnográfica, quanto sobre a importância da pesquisa antropológica e a das ciências humanas em geral para um enfrentamento efetivo ao vírus e aos seus efeitos sociais, econômicos, culturais, simbólicos e subjetivos. Meu foco vai ser o Brasil – e penso que isso já complica o suficiente a questão.

As urgências etnográficas em torno da pandemia têm se tornado visíveis na proliferação de iniciativas de criação de espaços para textos, testemunhos, debates, webinars promovidos pelos mais diversos organismos, como associações mundiais e nacionais de antropologia e ciências sociais, programas de pós -graduação e grupos e redes de pesquisa. Entre essas iniciativas, temos o Boletim e o Podcast da Anpocs, que tem publicado textos curtos sobre os diferentes temas evocados pela epidemia; o travessias.pandemia, da UnB; o blog Antropológicas-Epidêmicas, da UFRGS; o Epidemia de narrativas, do PPGAS/UFPEL; o Museológicas Podcast, da UFPE;  o Antropologia na Epidemia, do IBP (INCT Brasil Plural); o Observatório Antropológico, da UFPB. E nesta semana foi lançado o Relicarium, coordenado por Débora Diniz, em homenagem às mulheres que morreram por coronavírus. Tentei mapear o que pude e peço desculpas pelas que deixei de fora. Queria destacar nessas iniciativas, que são muitas e variadas, aquelas que, além de textos acadêmicos e de análise, estão preocupadas em produzir e dar visibilidade ao ativismo social durante a pandemia, às ações de apoio e solidariedade às comunidades e populações que hoje encontram uma grande dificuldade, não só em se protegerem do contágio mas também em obter o mínimo para conseguirem sobreviver. Todas elas são iniciativas riquíssimas e mostram a pujança da antropologia brasileira nas suas mais diferentes subáreas e linhas de pesquisa, ensino e intervenção.

Também nas antropologias mundiais, a gente observa um crescimento das respostas e dos espaços antropológicos dedicados à pandemia: só numa rápida pesquisa, gostaria de citar os blogs da Univ. de Leiden, da triple A (American anthropological Association), da Society for Cultural Anthropology, o Somatosphere, os Pandemic Diaries (da Am. Ethnologist), assim como alguns blogs que já eram dedicados a epidemias, como o Epidemic Response Anthropology Platform e o Ebola Response Anthropology Platform.

Toda essa produção, em parte decorrente de pesquisas etnográficas anteriores, em parte feita no tempo real da epidemia, nos coloca algumas perguntas: o que de específico a antropologia pode dizer e trazer sobre esta epidemia? Para quem estamos falando? Estamos sendo ouvidas? E por que é importante que sejamos ouvidas?  Essas perguntas não são novas. São perguntas que o campo da antropologia da saúde no Brasil tem se colocado há décadas. Há décadas insistimos na importância da pesquisa etnográfica e qualitativa no campo da saúde, para entender de forma mais consistente os processos sociais do adoecimento e da cura, para avaliarmos e subsidiarmos boas políticas públicas de saúde voltadas às populações que estudamos – a maioria em situação de precariedade social e de todo tipo de vulneralibilidade.

Falou-se muito na mídia sobre a primeira vítima de coronavírus no Brasil (depois descobriu-se uma vítima anterior, mas a história permaneceu): uma empregada doméstica que teria contraído o vírus de um casal que acabara de voltar do exterior. O fato dessa história circular bastante e ser mencionada, inclusive por especialistas epidemiologistas entrevistados, como exemplo das diferenças sociais na letalidade do vírus, mostra que existe um reconhecimento da dimensão social da pandemia. Mas esse reconhecimento não se traduz na elaboração de políticas que deem o devido peso a esses fatores sociais. Quando a epidemia chegou nas periferias de São Paulo, a letalidade aumentou enormemente. No dia 06 de maio já estava em 8%.  Circulou muito um mapa comparando o bairro do Morumbi com o bairro da Brasilândia e a disparidade enorme da letalidade entre eles. Hoje há outros bairros de São Paulo com letalidade ainda maior que a Brasilândia. E aí a gente pode perguntar: que áreas do conhecimento tem condições de compreender essas diferenças e desigualdades sociais e os modos distintos com que a pandemia chega e com que se lida com ela em diferentes populações? Quem possui as metodologias e instrumentos de análise para tal? Não é apenas uma questão de análise demográfica (proporção de idosos em uma população, concentração populacional), mas também de configuração familiar, modos específicos de cuidado das crianças, dos idosos e dos doentes, de uso dos aparelhos urbanos do bairro, de existência ou não de saneamento básico, de estrutura e composição das moradias, de habitus corporais e de higiene.

Hoje vivemos um momento de exclusão e silenciamento das Humanas – um dos desfechos mais perversos disso foi o novo edital de Iniciação Científica do CNPq, que simplesmente retirou da possibilidade de iniciação à pesquisa milhares de estudantes de cursos ligados às ciências humanas. Penso que essa exclusão reflete tanto um desprezo pela ciência, como uma visão muito limitada e precária do que seja ciência, reduzida às questões de inovação tecnológica. Essa briga é antiga. A gente sabe que o campo científico de um país é composto pelas diferentes áreas e disciplinas – que se sustentam umas às outras. E de diversos níveis de pesquisa, da iniciação e os vários graus de formação, às pesquisas avançadas; da ciência básica às ciências aplicadas. Cortar ou destruir uma dessas áreas esgarça o campo científico, rompe um elo fundamental que constitui esse campo. Um elo que não é apenas formal ou burocrático, mas epistêmico.  Sem a complexidade das áreas de conhecimento, não se entende a complexidade do mundo – nem a complexidade desta pandemia.

Mas a exclusão das Humanas está ligada também à visão de que o resultado de uma pesquisa deve gerar lucro – e no caso de uma pandemia, a própria tragédia se torna mais uma oportunidade de se fazer bons negócios, principalmente para as grandes corporações, em especial as da indústria farmacêutica e de equipamentos e insumos médicos. De certo modo menos ciências humanas se encaixa perfeitamente no projeto de menos Estado. Por que são as humanas que trazem a dimensão dos direitos e das necessidades das populações mais vulnerabilizadas, invisibilizadas, precarizadas. Mesmo durante a pandemia, o governo brasileiro segue à risca o preceito de menos Estado para os pobres, Estado máximo para os bancos e as grandes empresas.

Para organizar um pouco a minha reflexão sobre as diferentes dimensões da atuação da antropologia e das respostas antropológicas à epidemia, vou falar em dois aspectos da antropologia na epidemia do covid-19. 1) a antropologia durante o isolamento social: como fica a pesquisa etnográfica durante de depois da pandemia; 2) A antropologia da pandemia, em dois momentos: como conhecimento antropológico acumulado pode ajudar nesta pandemia; a etnografia e a antropologia desta pandemia.

A primeira delas, a antropologia na pandemia, independente de se o tema é em si a pandemia ou não, tem a ver com como fazer pesquisa etnográfica neste momento de isolamento e a distância social, quando um dos princípios da pesquisa etnográfica é o contato direto com nossos sujeitos de pesquisa, Muitos estudantes de graduação e pós-graduação que iriam entrar em campo no início da epidemia, ou que já estavam em campo, tiveram que recuar, adiar ou redimensionar suas pesquisas, alguns saíram de campo. Instrumentos de pesquisa de campo estão sendo revistos, pensando em formas de contato à distância, deslocando focos de pesquisa etnográfica tradicional para pesquisas documentais, e transformando as redes sociais num enorme e variado campo etnográfico – agora não apenas voltado a uma antropologia das redes sociais e do ciberespaço, mas uma antropologia nas redes sociais e no ciberespaço.

Mas não existe uma fórmula nem um manual para efetivar essas mudanças nos nossos instrumentos de pesquisa. Em um primeiro momento, pareciam apenas reacomodações de algumas estratégias de pesquisa tradicionais: as entrevistas seriam feitas por whatsapp, skype ou email; as narrativas seriam gravadas à distância, os eventos e ritos (agora virtuais) seriam observados desse modo também. Mas quanto mais a gente percebe que a vida social continua acontecendo fora das redes sociais, mais fica evidente que será necessário muito mais que reacomodações tecnológicas desses tradicionais instrumentos de pesquisa antropológica.

Grande parte das populações, comunidades e sujeitos com quem pesquisamos são as mesmas que estão na pior situação para o enfrentamento da pandemia, são as que mais estão morrendo e as que menos têm meios para seguir o isolamento e a distância social, ou de obedecer ao comando do “fique em casa”. Muitos antropólogos hoje estão envolvidos no apoio a essas comunidades: indígenas, quilombolas, população em situação de rua, imigrantes venezuelanos, haitianos, mulheres em situação de violência doméstica e outros. Os contatos etnográficos anteriores com esses sujeitos, permitem aos antropólogos perceberem muito rapidamente a sua situação e ouvirem de perto suas demandas e necessidades – demandas e necessidades que são incodificáveis pelas estatísticas epidemiológicas. Apoiar e participar de redes de solidariedade não é um ato paralelo ou externo à pesquisa, mas passa a fazer parte do fazer antropológico, da práxis antropológica.

As diferenças e condições desiguais de se fazer pesquisa antropológica também precisam ser enfrentadas: cortes de bolsas, precariedade de vida e sustento dos estudantes de graduação e pós, desigualdades de gênero. Uma pesquisa recente mostrou que durante a pandemia os homens pesquisadores aumentaram sua produção intelectual e as mulheres diminuíram.[5] Estudantes e pesquisadoras que tem filhos, pais e mães idosos, e outras responsabilidades familiares, muitas vezes se confrontam com a falta de tempo e de concentração sequer para ler um texto – lembrando que muitas de nós ainda seguem com os compromissos acadêmicos à distância: bancas, reuniões, palestras, redação de projetos e até aulas.

As novas e difíceis condições da pesquisa etnográfica também evidenciam a importância da etnografia compartilhada, de pesquisar com os sujeitos e não apenas sobre eles e de reconhecer que nossos sujeitos de pesquisa são sujeitos políticos – que suas demandas e necessidades não são extemporâneas ao processo de produção de conhecimento antropológico.

Agora eu vou falar um pouco da segunda dimensão, que tem a ver com uma antropologia da pandemia e de seus efeitos sociais. Essa antropologia da pandemia tem dois momentos.

O primeiro momento está ligado aos modos como o conhecimento antropológico já acumulado pode ser mobilizado para compreender e propor políticas e ações para o momento atual. Isso diz bastante respeito às pesquisas na antropologia da saúde, e em especial pesquisas sobre epidemias já vividas no país, como o HIV-aids e o zika vírus. Mas mobiliza também a antropologia do Estado e das políticas públicas, a antropologia urbana – como os trabalhos sobre os processos de gentrificação dos bairros centrais e precarização dos bairros populares e de ocupação, os estudos sobre os marcadores sociais da diferença, classe, raça, gênero, deficiência, e todo o conhecimento acumulado sobre as populações que a  antropologia brasileira estuda ao longo de sua história, que são precisamente as mais expostas à precariedade social, as desigualdades e à subalternidade.

Mobilizar todo esse conhecimento, agora no tempo real dos acontecimentos é um desafio enorme. Mas eu penso a gente tem muito a dizer.

O segundo momento da antropologia da epidemia está ligado às etnografias feitas diretamente no front desta epidemia e das situações de emergência que muitas dessas populações estão enfrentando agora, e que eu chamei de urgências etnográficas.

O que está em questão aqui é o que são respostas científicas à epidemia e como respostas que não levem em conta fatores sociais, culturais e os diferentes marcadores de diferença, como gênero, raça, classe, entre outros, acabam não se constituindo em respostas científicas consistentes ou plenas. Como eu falei antes, nós estamos vivendo uma situação muito complexa em relação ao campo científico: de um lado, um governo anti-ciência que nega todos os conhecimentos acumulados até agora sobre esta e outras epidemias e que vem desarticulando a ciência brasileira; de outro um tipo de tecnicismo excludente sutil, que insiste em não reconhecer a importância das humanas nas respostas e no enfrentamento à epidemia. O que leva a respostas precárias e fadadas ao fracasso – parcial ou mesmo total: o isolamento depende da adesão e das condições sociais para isso, e quem pode reconhecer e compreender essas condições sociais são as ciências sociais, e em particular a antropologia.

Então, um primeiro aspecto da compreensão social da pandemia foi mencionado antes, é o modo como a desigualdade social e a especificidade de diferentes populações vivem a situação da pandemia – em que o indicador mais alarmante é o crescimento exponencial da letalidade nessas populações.

Um segundo aspecto são os modos locais de compreensão do contágio e de lidar com o adoecimento, com as formas de tratamento e com a morte.  Esses modos locais não aparecem nos dados quantitativos e nas estatísticas da epidemia. Aliás até os dados epidemiológicos são extremamente precários no Brasil – e é interessante como na semana passada entrou em cena um novo ator na produção de dados da epidemia que são os cartórios, mostrando como o número de atestados de óbito por insuficiência respiratória aguda grave supera em muito os números oficiais de mortos por covid-19.[6]

Também uma série de temas específicos se mobilizam nessa abordagem das sensibilidades e compreensões locais e do imaginário social frente à epidemia.

Questões como o negacionismo do vírus estiveram presentes em outras epidemias (como a aids em seus inícios no EUA e posteriormente na África) e estão presentes nesta epidemia – reforçadas pela campanha sistemática de Jair Bolsonaro.

Do mesmo modo, o anseio pela “descoberta da cura” e a noção do “medicamento mágico”[7]– entram no imaginário da pandemia. A campanha pela cloroquina feita por Trump e Bolsonaro acaba encontrando os anseios de solução imediata.

Mas junto com as urgências, os regimes de temporalidade da pandemia, trazem outro desafio que é o de lidar com a perspectiva de longa duração da epidemia – a ideia de várias ondas, de um longo período de isolamento e pequenas brechas de retorno, e com a previsão de que medicamentos e vacinas ainda irão demorar alguns anos.

Um tema que acaba atravessando todos esses é o da produção de subjetividades durante a pandemia e nos modos de seu enfrentamento e as transformações ou suspensão relativa dos imperativos de normalidade e imposição de novos imperativos do que é normal em uma pandemia. Os modos sociais do sofrimento não são os mesmos. Não necessariamente a solidão do isolamento vivida por adultos de classe média é o problema que faz sofrer trabalhadores da periferia obrigados a pegar ônibus cheio para irem ao trabalho, habitando em moradias precárias, em bairros em que a socialização se dá nas ruelas estreitas. Eu gostaria de ter tido tempo de falar de modo mais estendido sobre o sofrimento e as questões relativas à saúde mental.

O suicídio do Flavio Migliaccio no meio de tantas perdas e a carta deixada por ele, ilegalmente divulgada pela Polícia Militar, escancarou uma questão que é o grau de suportabilidade dessa dupla catástrofe que a gente enfrenta no país. Existe na posição defendida por Bolsonaro e por alguns empresários desde o início da epidemia, de não se fazer isolamento e apostar no chamado “contágio de manada”, uma visão profundamente eugenista: há pessoas que vão morrer (idosos e doentes) mas isso é o “mal menor” diante de um valor maior –“a economia”. E quem são esses descartáveis? Além dos idosos, a comparação da taxa de letalidade entre pobres e ricos deixa evidente que são os pobres, os precarizados, a população negra,  juntamente com os trabalhadores da saúde e os dos chamados serviços essenciais, os que mais estão morrendo e irão morrer.

Não é à toa que o conceito de “necropolítica” tem sido tão usado para falar deste momento.

Mas eu queria falar também de uma outra dimensão do que a antropologia pode dizer sobre a pandemia que são as ações e os ativismos locais. A diretriz que marca a campanha do isolamento tem um problema de fundo: “fique em casa” e deixe que os profissionais de saúde ajam por você. O problema é que, além das condições profundamente desiguais desse “direito ao isolamento” (só fica em casa quem tem casa, e quem tem uma casa em que é possível se ficar 24 horas por dia todo mundo junto!). Existem dificuldades em se cumprir um mandato desse porte – tanto pelas condições desiguais do isolamento quanto pela necessidade premente de se ganhar o pão, de cuidar das crianças e mesmo de ir trabalhar nos serviços essenciais (saúde, coleta de resíduos, comércio alimentício, limpeza…).

É evidente que a distância social e mesmo o lockdown são fundamentais e já vieram tarde. A questão é que condições para isso foram criadas. Uma política de isolamento precisa estar articulada a outras medidas voltadas às necessidades específicas de cada população. Por exemplo, as sociedades indígenas, que já conviveram com epidemias anteriores que dizimaram comunidades inteiras: em plena pandemia vemos uma escalada das violações às terras indígenas e a paralisação das fiscalizações do Ibama por parte do ministério do Meio Ambiente. Então como pensar numa política de enfrentamento à pandemia junto às populações indígenas sem uma política emergencial de demarcação e de garantia da inviolabilidade dos territórios indígenas?

Nas favelas e nas periferias urbanas, vocês viram as reportagens sobre a falta de água e de sabão – o enfrentamento ao coronavírus e a outras epidemias mostram a necessidade de articular uma politica de saúde com políticas de combate à desigualdade social, ao desemprego crescente, à fome e à miséria, e a uma política emergencial de saneamento básico, que garanta água e rede de esgoto em todas as comunidades e bairros. Fora a incapacidade gritante do Estado brasileiró (no atual governo) em conseguir manejar os diferentes aparelhos urbanos e pensar de modo mais racional os diferentes espaços e aparelhos públicos e privados para o enfrentamento do Covid. Em contraste por exemplo com a China, que conseguiu construir hospitais em poucos dias, requisitou hotéis para colocar pessoas com diagnóstico positivo em quarentena. Se esperou lotar os leitos públicos de UTI no Brasil para se começar a pensar em adotar a fila única para as UTIs – e ainda com um ministro da saúde que é contra.

Além dessas condições desiguais, o modo como a política de isolamento e distância social se produziu se baseia num princípio de desagenciamento quase absoluto das pessoas. Uma política de saúde baseada exclusivamente em critérios técnicos da epidemiologia e sem uma visão social dos efeitos da epidemia acaba desconhecendo as iniciativas e as invenções locais das respostas à epidemia e aos efeitos econômicos e sociais do isolamento.[8]

O que essas iniciativas, saberes e modos locais de lidar com a pandemia podem ajudar na produção de políticas públicas de enfrentamento à pandemia e a seus efeitos econômicos, sociais, culturais, simbólicos e subjetivos? Vale nos determos em alguns exemplos.

Enquanto economistas chamavam a atenção do Estado para que impulsionasse uma política de reconversão industrial, voltada por exemplo à produção de Equipamentos de Proteção individual (EPIs) e outros equipamentos e insumos médicos que estão faltando, um processo micropolítico e horizontal de transformação das cadeias de consumo e de produção começou a acontecer: por exemplo costureiras e mulheres de comunidades periféricas começam a confeccionar máscaras de proteção; pequenos agricultores passam a entregar alimentos em casa, formando uma rede de distribuição da produção agrícola orgânica e sustentável; redes de solidariedade de produção e distribuição de refeições  nas periferias urbanas são organizadas; formas de auto-organização em alguns bairros periféricos, garantindo o isolamento da comunidade e vigilâncias e delegados populares para monitorar as casas. Que resultados teria incluir essas e muitas outras iniciativas e agências locais na elaboração das políticas de enfrentamento? Por que não potencializar as agências e iniciativas locais? Ninguém nega que epidemiologistas, virologistas, infectologistas estão na linha de frente para pensar os modos de enfrentamento, mas tem uma enorme base ou escalões intermediários dos vários campos do conhecimento e dos saberes e técnicas locais que produziriam uma inteligência muito mais eficaz de enfrentamento à pandemia.

Por exemplo, porque não montar comitês interdisciplinares de enfrentamento à pandemia em cada estado e em cada cidade? Nós sabemos como esse foi um debate difícil na implantação das politicas de saúde e de saúde mental e da resistência que se encontrou no campo biomédico – de incorporação de profissionais de outros campos e de democratização do processo de elaboração das políticas públicas. Mas algumas conquistas aconteceram no sentido de realizar na prática esses princípios, como a inclusão de antropólogos na formulação e gestão das politicas de saúde indígena (mesmo que de modo limitado, como vários trabalhos demonstram). Infelizmente, parece que a pandemia está servindo de espaço para que reemerja com força uma visão da saúde e da política de saúde exclusivamente centrada na dimensão bio-farmaco-medica na saúde pública e isso é preocupante.

Por fim, logo será preciso pensar no pós-pandemia, mesmo que novas ondas venham, elas já não serão iguais à essa primeira grande onda mundial – mesmo que possam se maiores, não seremos mais neófitos. Pensar como será a vida social depois da pandemia.

É interessante dar uma olhada no exemplo de Wuhan, na China, onde a crise chegou primeiro e que primeiro está começando a viver o pós-pandemia e a recriar os rituais de normalidade. Mas também tentar entender como o pós-pandemia já está sendo pensado por diferentes setores, do grande empresariado a diferentes forças políticas: extensão e consolidação das experiências de trabalho, consumo e serviços sem contato (como as várias formas de home office, a telemedicina, entre outros – e na educação a tentativa de transformar o precário ensino remoto de durante a pandemia em ensino à distância – precisamos resistir a isso).

Alguns analistas denunciaram recentemente o que seria o programa da extrema direita europeia no pós-pandemia e após a grande mortandade que aconteceu em alguns países europeus e nos EUA – o chamado para um novo babyboom branco.[9] Com todas as consequências como um enorme recuo em relação às conquistas feministas, retorno das mulheres às casas e a múltiplas maternidades, priorização dos homens no emprego etc.

Ao mesmo tempo circulam discussões sobre o esgotamento do capitalismo) e dos modelos energéticos e de produção industrial, como a proposta holandesa de decrescimento mundial como um programa político, econômico e de estilo de vida pós-pandemia.

Programas, projetos, utopias pós-distópicas, começam a se formular no horizonte. (mas também aprofundamentos da cena distópica com os programas neo-fascistas emergindo ou crescendo em vários países)

Talvez seja o momento, no nosso campo de começar a pensar o que seria uma imaginação antropológica radical neste momento que pressagia rupturas nos modos de vida, de existência e de estar juntos. Convido vocês pra gente pensarmos isso juntas. Obrigada!

Referências:

BIEHL, João. Antropologia no campo da saúde global. Horiz. antropol. [online]. 2011, vol.17, n.35 [cited  2020-05-27], pp.227-256.

KLEIN, Naomi. The Shock Doctrine. The rise of disaster capitalism. New York: Metropolitan Books, 2007.

WILKINSON, Annie. Why disease epidemics need input from anthropology. SciDev.net, 2015.

WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017.

_______

NOTAS:

[1] Aula Inaugural no PPGAS/UFAL, por webconferência, em 08/5/2020.

[2] Junto com Annie Wilkinson, (2015) quando analisa a epidemia de ebola na África ocidental.

[3] Klein, 2007.

[4] 5 de maio de 2020.

[5] https://ajps.org/2020/04/20/it-takes-a-submission-gendered-patterns-in-the-pages-of-ajps/ e http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-reduz-submissoes-de-mulheres/

[6] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/28/mesmo-com-subnotificacao-cartorios-registram-5-mais-mortes-por-covid-19.htm

[7] Pílula mágica, bala mágica, tal como se tem discutido no campo da saúde mental (Whitaker, 2017); e da saúde global e outras epidemias, como HIV-Aids (Biehl, 2011).

[8] Ao mesmo tempo em que a grande mídia dá visibilidade a medidas limitadas e filantrópicas de grandes empresas privadas, tema que chegou a virar um quadro no Jornal Nacional durante a pandemia, pouco ou nada é mostrado dessas iniciativas horizontais de solidariedade e auto-organização.

[9] Ver por exemplo https://www.degruyter.com/fileasset/craft/media/doc/DG_12perspectives_socialsciences.pdf