Sobre a chegada do Covid-19 ao sul da Bahia: relato de uma antropóloga em campo

03/05/2020 - Amanda Rodrigues, Doutoranda PPGAS-UFSC

Aproximei-me dos Tupinambá de Olivença como professora do curso de enfermagem da Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus no sul da Bahia. Enquanto acompanhava alunos em atividades práticas em um hospital estadual da cidade, deparei com alguns indígenas em tratamento hospitalar. Elaborei um projeto de pesquisa e junto com bolsistas de iniciação científica, dei seguimento à relação com esse povo, conhecendo sobre suas práticas de saúde. Meu projeto de doutorado aborda os itinerários empreendidos pelos Tupinambá em busca de atendimento nos serviços de saúde de média e alta complexidade.  Comecei o trabalho de campo em julho de 2019, mas tive que interromper na segunda semana de março. Naquela semana, eu pretendia fazer algumas visitas em companhia de uma das agentes indígenas de saúde e participar de uma atividade realizada pela equipe do Pólo Base tematizando a saúde da mulher indígena.

Ocorreu que uma das professoras da escola de meu filho foi afastada por ter trabalhado em um casamento, ocorrido em um Resort em Itacaré. Para essa festa, vários convidados vieram de São Paulo e um deles estava contaminado pelo Covid-19. O fato foi amplamente noticiado no estado e ocupou manchetes no país. Meu filho e eu passamos a manter quarentena a partir do dia 12 de março. Informei a alguns interlocutores o motivo de minha ausência e o fato foi amplamente divulgado pela mídia da região. A professora, após o período prescrito, não apresentou sintomas da doença e obteve resultado negativo do teste. Porém, terminado o período de 14 dias, multiplicaram-se os casos suspeitos na cidade. Diante desse panorama e da nota emitida pela Funai em março alertando sobre a necessidade de restringir visitas às comunidades indígenas, meu retorno às aldeias não foi possível, mas continuei em contato com os parceiros e parceiras que encontrei. A pandemia era assunto frequente em nossas conversas.

Foi assim que soube que a delegação de indígenas que retornou de viagem a Brasília no início de março foi orientada a manter isolamento domiciliar nas aldeias. As recomendações incluíam manter-se em casa, evitar contato com idosos, crianças e gestantes, separar utensílios de uso pessoal e comunicar à equipe de saúde a presença de quaisquer sintomas gripais. Nenhum deles comunicou qualquer sintoma. Na medida em que as atividades de ensino e outras foram suspensas nos municípios vizinhos, mais indígenas foram retornando para suas aldeias e os Agentes Indígenas de Saúde (AIS) foram replicando as mesmas orientações.

Retomei o contato com a equipe de saúde do Pólo Base na primeira semana de abril e soube que alguns destes profissionais tinham participado de uma reunião junto à equipe de saúde do município duas semanas antes. Considerando o desenho dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEIs –, que prevê que os atendimentos caracterizados como de alta e média complexidade utilizem os serviços do SUS dos municípios circunvizinhos, era fundamental que a equipe do Pólo estivesse presente. Na verdade, representantes de diferentes serviços de saúde foram convocados para esse e outros encontros que objetivavam desenhar e alinhar fluxos entre os serviços para enfrentamento da Covid-19. O fato me preocupou porque, a essa altura, já havia sido detectado o primeiro caso da doença em Ilhéus: um médico que atuava em vários serviços de atenção básica da cidade e que circulou nessas reuniões. Uma das enfermeiras atuantes no Pólo esteve nesta reunião e contraiu a doença. Desde quando apresentou sintomas, ela se manteve isolada, e recebeu o resultado positivo dias depois. Após isso, outros profissionais de saúde que estiveram presentes neste encontro também foram testados, além de um AIS que apresentou sintomas gripais e havia entrado em contato direto com uma das enfermeiras expostas. Todos os testes tiveram resultado negativo.

Acompanhei a tensão das enfermeiras com este fato, ouvindo as medidas de prevenção que passaram a adotar desde que a pandemia chegara à Bahia: durante as vacinações e demais  atendimentos realizados nas aldeias passaram a usar paramentação completa para proteção, desenharam um fluxo diferenciado nos atendimentos para evitar aglomerações, adotaram um cartão de vacina exclusivo para a campanha. Todas essas medidas, disse-me uma delas em tom de lamento, não foram suficientes para evitar que os casos da doença chegassem perto das comunidades. Argumentei que, por outro lado, as medidas foram decisivas para que nenhum indígena se contaminasse a partir da equipe de saúde. Cabia então, apostar em estratégias para ampliar essas barreiras. Ofereci-me para costurar máscaras de tecido para os Agentes Indígenas de Saúde, para que usassem nas visitas que realizam nas localidades. As enfermeiras assumiram a tarefa de, com a ajuda dos AIS, buscarem costureiras nas aldeias para confeccionar mais máscaras.

Dois dias depois, informaram que conseguiram uma voluntária e enviei, junto com as primeiras máscaras que tinha costurado, material para que a confecção começasse em uma aldeia. Os AIS se mobilizaram junto com as enfermeiras para conseguir doações e compraram mais material para a costura. As lideranças indígenas endossaram o esforço buscando não apenas insumos para a confecção de novas máscaras e voluntários para a costura, como doações de alimentos e material de limpeza. Esse movimento é indispensável para assegurar assistência à saúde aos Tupinambá no contexto que vivenciamos, pois, muitos indígenas obtêm seu sustento comercializando produtos – obtidos do cultivo de suas roças, da apicultura e do artesanato – na cidade. Além da restrição das feiras, os transportes públicos de que dependem para se locomover foram suspensos. Ainda não conseguiram oferecer ajuda a todas as famílias, mas o esforço persiste.

Quando me pego pensando sobre como o Convid-19 afetou meu campo junto aos Tupinambá de Olivença, o que sobressalta não é a distância, advinda da restrição de contato físico, mas a proximidade. Recebi mensagens de alguns indígenas enquanto aguardava o desfecho clínico da professora da escola de meu filho. Entre outras coisas, falaram-se sobre a importância de acreditar na proteção que os Encantados oferecem a eles e àqueles que são de  luta. Diversas vezes ouvi em campo a palavra luta e entendi que ela fazia referência à defesa de seu território ancestral, à demanda pela demarcação desse território, à garantia de direitos constitucionais. Dessa vez entendi que luta se refere à vida, algo que está imbrincado a viver. Algo que não é exclusivo dos Tupinambá e que se faz junto, pois para se lutar é preciso que “um pise na pisada do outro”, disse-me uma vez cacique Alício. Penso que isso diz sobre continuidade, mas também sobre sintonia. Aponta para coisas que não são prejudicadas pelas restrições de circulação desencadeadas pela pandemia, e podem ser colocadas em relevo a partir dela. Tenho aprendido que o “estar com a gente” de que os Tupinambá me falam desde o início de nossa caminhada, multiplica o que podemos partilhar durante esses tempos, o que enxergamos da pandemia e o que passa a nos compor depois que vivenciamos uma etnografia

Essas digressões têm embalado a maneira como observo as torções que a pandemia causou em meu campo. E a fase da escrita da tese, que precisou ser antecipada, tem sido executada em conjunto com outras formas de ‘estar junto’, seja em ligações e mensagens, seja com o tempo que dedico para costurar máscaras.