Relatos de um Antropólogo em isolamento no terreiro de Umbanda

Igor Luiz Rodrigues da Silva, doutorando do PPGAS/UFSC*

Este relato se estende além do campo e pesquisa já finalizada para a obtenção do titulo de doutor. Terminei a ultima parte da minha pesquisa no rio São Francisco no dia 13 de março de 2020. É uma pesquisa onde analiso questões sobre modificações de paisagens, relações multiespécies, relação de técnicas, práticas e percepções dos ribeirinhos com e no o rio, na cidade sertaneja de Pão de Açúcar, Alagoas. A ultima fase da pesquisa tinha sido iniciada em maio de 2019.

Eu tinha o objetivo de voltar a Florianópolis no dia 20 de março, para, por fim, entrar na fase final, que é na escrita da qualificação e tese, bem como na edição de imagens e vídeos produzidos durante os dois anos que estive em campo. Aqui em Alagoas, quando a pandemia começou a se espalhar pelo país, demorou um pouco para se ter registro dos primeiros casos e tudo funcionava na mais pura normalidade, porém em outros estados como São Paulo, Rio de Janeiro e até mesmo Santa Catarina, já apresentavam seus altos números.

Aeroportos já davam sinais de que entrariam em colapso, que voos seriam cancelados, que filas iam começar a serem produzidas por todos os cantos. Do mesmo modo que os canais de atendimento das operadoras passaram a não mais atender ligações, atendimentos demorados, muitas das vezes sem solução. Eu tive o voo do dia 20 de março cancelado, e depois disso, passei a peregrinar em busca de soluções para remarcar passagem, pedi reembolso, sem conseguir êxito. Remarquei voo que depois foi cancelado, até que conseguir pedir reembolso, mesmo não tendo previsão de quando vou receber. Tive que comprar a passagem por outra companhia aérea, faltando dois dias para viajar, o voo foi alterado e eu iria passar 12 horas em uma escala no aeroporto de Guarulhos, correndo todos os riscos de contrair o covid-19. Tentei remarcar, sem sucesso, depois de já ter desistido de viajar, conseguir o bônus para a efetuação de uma nova passagem.

Nesse período, Alagoas e Maceió, onde eu me encontro hoje, entrou em total isolamento social, ruas vazias, estradas com pouca movimentação, ainda consegui sair um dia para pedalar na orla, depois o medo e pânico tomou conta e eu não consegui mais sair para a realização de atividades esportivas, mesmo fazendo individualmente. Ao mesmo tempo em que tudo se fechava, pessoas paravam de trabalhar, muitos começavam a perder seus empregos, o Terreiro de Umbanda do qual faço parte aqui em Maceió, tendo suas atividades religiosas paralisadas, festas canceladas (Feijoada do Pai Joaquim em 19 de março, a de Ogum em 21 de abril, e provavelmente a maior festa do terreiro, a Feijoada de Vovó Maria Conga, que acontece todos os anos no dia 13 de maio também não vai se realizar), decidiu retomar a distribuição de sopas para a comunidade do entorno do Ilê.

O GUESB (Grupo União Espirita Santa Barbara), está localizado na periferia de Maceió, em um conjunto habitacional conhecido pelos seus altos índices de violência, de pobreza, de marginalização, de analfabetismo e cujas maioria das mulheres, trabalham como diaristas e empregadas domesticas na parte baixa da cidade, onde estão localizadas as praias da capital. E por conta das medidas de isolamento e redução na frota de ônibus, muitas começaram a ficar sem emprego e renda, bem como seus maridos, companheiros.

Assim, a distribuição de sopa surge nesse momento, como a única refeição feita por famílias inteiras, como nos relatam pessoas, que com seus potes e vasilhas nas mãos, voltam para suas casas com a esperança de uma alimentação. Servimos a sopa sempre as quartas e sábados (dias consagrados a Iansã na quarta e as outras Yabás, Oxum, Nanã e Iemanjá, no sábado, pois são todas mães, que batalham, lutam, protegem e alimentam seus filhos e filhas).  São distribuídos mais de 150 litros de sopa, contendo legumes e carnes, sob os cuidados de nossa matriarca, que também é Chefe de Cozinha.

Desde então, impossibilitado de retornar a Santa Catarina e a UFSC, já que todas as suas atividades também estão paralisadas e impossibilitado de fazer qualquer outra atividade acadêmica, foi despertada em mim, a necessidade de me unir a minha Ialorixá, aos seus filhos biológicos, e a mais uma quatro pessoas, irmãos e irmãs de fé, na preparação das sopas. Estamos em isolamento social, convivendo todas e todos dentro do ambiente amplo do terreiro. O salão onde ocorrem os ritos, festas e louvações, tem servido de ambiente para dormir e descansar, tendo sido também o lugar escolhido para começar a fazer lives, com o intuito de manter acesa a chama da fé e da esperança onde quer que a nossa mensagem chegue.

Para além da distribuição de sopas, começamos a ampliar nossas atividades, mobilizando pessoas e algumas costureiras do bairro na confecção de mascaras de tecido. Aqui no terreiro a gente corta os tecidos, os elásticos e começamos a deixar na casa das costureiras o material, e depois de prontas e finalizadas passamos para recolher e fazemos a distribuição durante a sopa. Ao mesmo tempo em que começamos a distribuir sopas, lançamos uma campanha nas redes sociais do GUESB, do projeto INAÊ que é a Ong mantida pelo Ilê, para arrecadar alimentos e contribuições em dinheiro para confecção de cestas básicas.

Hoje, 04 de maio de 2020, enquanto eu construo esse relato, foram distribuídas mais de 350 cestas básicas e 300 kits de higiene, para famílias previamente cadastradas aqui em nossa instituição. Contamos com a ajuda de alguns parceiros e parceiras, estamos tentando amenizar um pouco as perdas matérias dessas famílias. Infelizmente, não temos como atender a toda comunidade  socialmente vulnerável.

Esses quase dois meses de isolamento que tenho vivido aqui dentro do terreiro, para além das ações já mencionadas, têm com muita intensidade, ampliado meu conhecimento, minha entrega, meu aprendizado. Tem provocado aprofundamentos espirituais, me fazendo estabelecer vínculos mais estreitos, mais sólidos com os ritos e o cotidiano de uma casa de Umbanda para além dos seus momentos festivos e de grandes celebrações ritualísticas.

Além dos cuidados e procedimentos que fazem parte das medidas de segurança do isolamento social, orações e pequenos atos rituais tem se estabelecido com o intuito de somar a tantos outros rituais que estão sendo feitos por outras casas de religião de matriz africana, país a fora. Orixás como Obaluaê/ Omolu senhor da terra, da doença, da peste, da cura e saúde tem suas florzinhas ofertadas aos seus pés, pedindo a cura e saúde para os corpos feridos pelas chagas do Covid-19.

Oxumarê tem sido outro orixá bastante invocado e agraciado com oferendas e preces de suplicas. Oxumarê é conhecido como o senhor das transformações e mudanças que ocorrem no mundo, nos mundos. É o senhor que fecha e abre ciclos, que comanda as mutações e reordena o eixo da terra. Assim, como Obaluaê e Oxumaré, o senhor Tempo, reacende dentro dos terreiros de umbanda e candomblé a esperança em um novo ciclo, sua bandeira hasteada em constante movimento, nos convida a ter paciência e muita consciência do momento em que vivemos.

Termino este pequeno relato, expondo que há uma explicação espiritual, também, para que tantos cancelamentos dos voos e tanto atraso em remarcar ou conseguir finalmente uma data exata para Santa Catarina, pois segundo me informou a minha Yálorixá, a Vovó Maria Conga, que é a mentora espiritual do GUESB, já tinha providenciado tudo, já tinha reorganizado meus propósitos, meus planos e também meus processos de autoconhecimento espiritual e me condicionado para um novo momento que virá após a pandemia, do qual a escrita da tese é o foco principal.

Continuo aqui, em comunhão com os orixás, com os bons espíritos e guias, na companhia dos que junto comigo compartilham deste momento, proporcionando aos que mais necessitam, um pouco de conforto, de atenção, mesmo que para isto nossas vidas estejam em risco. Continuo acreditando que é possível vislumbrar mais para frente um mundo menos conectado com as redes sociais via internet, celular e aplicativos e mais convidativo e seguro. O mundo se reorganiza, e é preciso que a gente se encaixe nele com uma entrega totalmente diferente da que tínhamos acostumados a fazer, ou então continuaremos a ser os principais vilões de nós mesmos, da morte de outros seres não-humanos e da ira das divindades do panteão africano.

Precisamos parar de sermos os principais incentivadores e propagadores das ruínas que se alastram com o antropoceno.

A todas e todos, cuidemos de nossa casa física e espiritual, cuidemos dos que nos pedem um mínimo de atenção e conforto…

Um afetuoso abraço carregado de muito afeto e Axé!!

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* Estudante pesquisador do IBP, da rede saberes, educação. Faz parte do Coletivo CANOA-PPGAS/UFSC. É umbandista no Grupo União Espirita Santa Barbara na cidade de Maceió-Alagoas