Povos Ciganos em tempo de pandemia. Entrevista com Edilma do Nascimento

31/02/2020 - Por Valentina Nieto

Edilma do Nascimento é Doutora em antropologia pelo PPGAS-UFSC, integrante do NEPI e pesquisadora do IBP, especialista em povos ciganos Calon.  Conversamos com ela sobre o fazer antropológico em tempos de coronavírus e os desafios que os povos ciganos enfrentam no contexto atual.

Valentina: Como tem afetado teu trabalho com os Povos Ciganos neste período de pandemia?

Edilma:  Este momento de isolamento tem modificado e recriado maneiras no/do fazer antropológico. Mesmo não estando presente em campo, o trabalho permanece com o contato diário através de trocas de mensagens nas redes sociais, onde posso trocar ideias com eles sobre como tem sido seu cotidiano e os aspectos sociais e econômicos. Neste momento, tenho auxiliado também no processo de inscrição e acesso ao benefício do auxílio emergencial entre alguns ciganos que ainda não conseguiram recebê-lo. Tenho tentado me manter presente, mesmo com os cuidados deste momento. Após ter sido diagnosticada com o COVID-19, o fluxo das mensagens aumentou, só que agora a tônica tornou os cuidados com minha saúde e de meus familiares. É importante lembrar que as relações construídas no período de campo perduram depois do período de imersão, e são estas relações que nos afetam e permitem recriar a maneira do fazer etnografia no tempo presente.  Acredito também que nosso compromisso com as populações pesquisadas, requerem neste momento político e de saúde pública no Brasil, uma atuação ainda mais enfática por parte dos antropólogos.

Embora ainda poucas pesquisas tenham sido realizadas com as diversas populações ciganas, e poucas ações políticas com eficácia comprovadas possam ser enumeradas no presente, estamos presenciando uma forte articulação nacional nas diferentes regiões, concretizadas pelos próprios ciganos, ativistas, associações e alguns pesquisadores.

Valentina: Que medidas tem sido tomadas para atender aos Povos Ciganos?

Edilma: Algumas medidas como a distribuição de cestas básicas têm sido tomadas pra atender às populações ciganas e em geral, são medidas promovidas por ativistas, pesquisadores e associações. Atualmente tenho atuado junto ao Observatório Antropológico da Paraíba, um grupo de estudantes e pesquisadores que tem promovido e articulado informações e campanhas da situação da Pandemia em alguns contextos da região.

Nossa primeira articulação junto ao Observatório foi um levantamento sobre a situação dos ciganos Calon neste momento, e agora estamos promovendo a campanha “ajude um rancho cigano”, buscando auxiliar as famílias ciganas neste momento[1]. Na Paraíba contamos com cerca de 31 municípios com a presença de famílias ciganas da etnia Calon, dentre estas localidades se destacam os municípios de Sousa, Condado, Patos e Mamanguape. São famílias compostas por crianças, adultos e velhos, vivendo num circuito de reciprocidade profunda, compartilhando intimamente o cotidiano, o que torna a efetividade do distanciamento algo mais difícil neste momento, porém tem sido cumprido.

Valentina: De que forma a pandemia tem afetado aos ciganos?

Edilma: Já registramos casos de ciganos infectados pelo COVID-19, temos dados de notificação de presença de ciganos em estado mais grave no estado do Ceará e Bahia, existe também a informação de um óbito no estado do Tocantins, uma mulher cigana, mas não há a comprovação via exames que seu óbito tenha sido ocasionado pelo vírus. Todavia, reforço que os ciganos são uma população que embora resiliente é vulnerável, e precisa de atenção neste momento.

Já o isolamento social tem trazido danos principalmente numa perspectiva econômica. Com o isolamento, os ciganos ficam impossibilitados de circular para realizarem suas vendas, trocas, leituras de mãos, entre outros ofícios com os quais contribuem à economia familiar. Além das dificuldades atreladas ao econômico, como pesquisadora, tenho acompanhado crescentes casos de ciganofobia em alguns municípios da região sul do Brasil, localidades onde em sua maioria os ciganos vivem em situação de itinerância [2].

Valentina: Há medidas do governo dirigidas a atendê-los?

Edilma: Este período tem sido, além de um momento de resistência como sempre foi, um período de reflexão sobre a ausência de políticas públicas que alcancem os ciganos. As campanhas realizadas pelo governo federal tiveram a intenção de informar sobre cuidados e prevenção ao COVID-19, mas tenho minhas críticas a maneira de abordagem utilizada pelo governo federal. Com um alto índice de pessoas analfabetas, as campanhas precisam priorizar modelos de campanha em perspectiva audiovisual para ter um maior alcance.  Outro desafio neste momento, tem sido o acesso ao auxílio emergencial que se dão também pelos entraves burocráticos. No estado da Paraíba, a ação tomada foi distribuição  de cestas básicas ainda no período inicial da quarentena no estado (final de março, início de abril.

Valentina: Que entidades ou organizações estão apoiando o povo cigano neste momento?

Edilma: Até o momento existem algumas associações que estão apoiando os ciganos, que geralmente são pessoas que já trabalham há anos com estes povos. Nesta semana como já falei, lançamos junto ao Observatório Antropológico do PPGA/UFPB, a campanha “Ajude um rancho cigano”, onde estão disponibilizados contatos e dados dos ciganos e ciganas de diferentes localidades na Paraíba. As pessoas que quiserem contribuir e aderir à campanha poderão entrar em contato diretamente com os ciganos a partir de seus contatos.

 Valentina: Que estratégias de autocuidado têm assumido os ciganos?

Edilma: Os ciganos estão se prevenindo cumprindo o isolamento social, cumprindo os protocolos exigidos de cuidado com a higienização pessoal e dos produtos que chegam nos ranchos/acampamentos. A própria lógica de vida dos ciganos de distanciamento dos não-ciganos têm sido uma regra social efetiva neste momento de distanciamento social. Os ciganos Calon geralmente compartilham a maior parte do cotidiano entre seus familiares, neste momento, o cuidado com os mais velhos e as crianças tem sido redobrado. Marcilânia Alcântara, cigana Calon que reside em Sousa, município do sertão paraibano, relata que sua mãe e seu filho não colocam nem o rosto fora do rancho, que os cuidados têm sido redobrados e que só o seu esposo tem saído para ir fazer as compras necessárias.

Valentina: Achas que fazem sentido as medidas recomendadas pela OMS e as entidades do governo na realidade do povo cigano?

Edilma:Fazem sentido sim, porém não atendem às necessidades dos ciganos. Os ciganos precisam sim ficar em quarentena, mas o Estado deveria garantir um ambiente seguro. No caso dos ciganos que estão em situação de itinerância, é preciso assegurar um local para acampamento com água potável e energia, sem que fossem cobradas, já que eles estão sem poder trabalhar. Outra medida que deveria ser feita são ações de distribuição de álcool em gel e máscaras, e cestas básicas de maneira periódicas e não esporádica como acontece. Muitos ciganos não possuem condições econômicas para continuarem sustentando suas famílias. Para não ficar só em minhas percepções, quero convidar vocês a escutarem o podcast 04[3] da coleção Ciências Sociais e o Coronavírus, organizado e publicado através da ANPOCS. Um podcast onde vocês conhecerão através do cruzamento de quatro histórias de pessoas ciganas, a situação histórica deste povo no Brasil, de diferentes regiões. Eles falam sobre políticas públicas e a situação dos ciganos na quarentena. Para terminar quero destacar que no dia 24 de maio é comemorado no Brasil o “Dia Nacional dos Povos Ciganos”. Quero aproveitar a oportunidade, agradecer e parabenizar a todos/as os/as ciganos/as com quem tenho caminhado nesta vida. Viva os Povos Ciganos!

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NOTAS

[1] Vocês podem conferir o mapeamento e a campanha no site do Observatório Antropológico, através do link: https://observantropologia.wixsite.com/ufpb/sousa

[2] Uma nota repúdio foi emitida por ativistas e pesquisadores, podemos ter acesso através do Boletim 42 da ANPOCS, o qual apresenta uma contextualização sobre a população e apresenta a nota de repúdio assinada, no link: http://www.anpocs.com/index.php/ciencias-sociais/destaques/2357-boletim-n-42-cientistas-sociais-e-o-coronavirus.

[3] https://anchor.fm/cienciassociaisecorona/episodes/Podcast-n-04—Ciganos-em-quarentena-ed723o