Os desafios de enfrentar a pandemia de Covid-19, nas aldeias e cidades amazônicas: relato de um antropólogo tukano

João Rivelino Rezende Barreto ou Yúpuri, que significa guardião das portas do universo em língua Tukano, foi o primeiro indígena brasileiro que concluiu o doutorado no PPGAS-UFSC.  Defendeu em junho de 2019 sua tese “ÚKŨSSE: forma de conhecimento TUKANO via arte do diálogo KUMUÃNICA” na UFSC, em Florianópolis. Atualmente mora em Manaus, onde trabalha como professor no Curso Pedagogia da Faculdade Salesiana Dom Bosco (FSDB/MANAUS/AM), coordena o Núcleo de Estudos, Acompanhamento e Pesquisas Indígenas (NEAPI) e é pesquisador do Instituto Brasil Plural. Conversamos com ele sobre seu trabalho como pesquisador indígena e sua difícil experiência com a doença do Coronavirus.

Valentina: Como foi tua formação e trajetória como pesquisador, antropólogo?

Rivelino: Eu defendi minha tese em junho de 2019. Esta pesquisa foi uma continuação de um assunto que venho desenvolvendo desde o ano de 2008 quando conclui a graduação em filosofia. Ainda na graduação, me deparei com o livro de Werner Jaeger, “Paideia: a formação do homem grego”. Partindo dessa leitura fiz o inverso e passei a pesquisar sobre a formação do homem Tukano.  Desde então comecei os trabalhos de gravação de relatos com o meu pai, o kumu Luciano Borges Barreto. Na pesquisa do mestrado em antropologia social na UFAM defendi a dissertação com o título “Formação e transformação de coletivos indígenas no Noroeste Amazônico: do mito à sociologia das comunidades”. A pesquisa continuou sendo feita com meu pai, mas consegui  retornar à aldeia São Domingos Sávio do alto Rio Tiquié, no noroeste amazônico, localidade dos Tukano do sib Yúpuri Sararó Buubera Põra, fundada pelo meu avô Mandu Kuriano. No doutorado, já com certa maturidade e formação  acadêmica, continuei fazendo pesquisa com base naquilo que chamo de “etnografia em casa”, na qual refleti sobre uma matriz de conhecimentos tukano que conceitualizei como úkũsse, um conceito base para o entendimento da antropologia da transformação das artes do diálogo tukano, ensinado pelo kumu, o detentor das faculdades excepcionais tukano. Uma etnografia em casa se refere tanto ao método como ao objeto de pesquisa, pois não se baseia só no exercício de pesquisa antropológica entre um pai kumu (meu pai) e eu, um filho estudante de antropologia, mas especificamente com a ideia de que “casa” para os Tukano se refere ao corpo humano, ao universo e  as diversas particularidades da natureza, humana e animal. Considero este o primeiro ensaio que dialoga entre antropologia e antropologia tukano, pois eu tenho dois lados formativos, como Tukano em formação e como antropólogo em formação e procuro manter esse diálogo.

Valentina: Como foi tua experiencia com a Covid-19?

Rivelino: Esse foi um momento bem difícil aqui em casa.  Primeiro, porque minha linha de pesquisa tem no fundo a procura pela continuidade dos elementos das faculdades excepcionais tukano, como são os benzimentos e curas, em geral aquilo que chamo de forças intelectuais do xamanismo tukano.  Em parte, porque meu pai é um dos grandes especialistas nessa área.  Então, meu pai me disse “olha meu filho até onde eu sei, eu curo, até onde eu não sei, confio na medicina”. Assim, minha leitura no momento em que estamos vivendo devido a pandemia da Covid-19 é um pouco nesse sentido de ter confiança nas nossas curas, a confiança na medicina, e inclusive a confiança na fé.

Na minha tese, por exemplo, eu apresento as histórias que formulam os bhassessé (benzimentos), pois estes se originam das histórias de personagens divinas que vivenciam conflitos e problemas. No âmbito da formação tukano, meu pai é meu orientador, meu mestre. Então, quando meu pai ensina uma fórmula de bhassessé, ele não começa tratando de uma teoria, como se faz na academia, mas falando de uma história, para depois pensar no tratamento e na cura. Deste modo, até então nós indígenas Tukano, por exemplo, temos nossos bhassessé e outras fontes das plantas medicinais que, de certa forma, nos ajudam a lidar com certos tipos de doenças, como a gripe, a dor de cabeça, dor no corpo, problema no corpo das mulheres, coceiras no corpo, dores nos olhos, nos ouvidos, entre outros. Mas, nesse caso, há um conhecimento prévio das doenças, como uma explicação e uma fórmula para tratá-las.  Por exemplo, quando uma pessoa tem uma dor de cabeça o kumú já tem um conhecimento prévio sobre aquela doença e procura descobrir as fórmulas de bhassessé para cura.  Ele começa com uma fórmula, se essa não funciona, passa para outra. As vezes para uma situação ele deve tentar 5 ou 6 fórmulas até acertar, os bhassessé também, de certo modo, funcionam como técnicas biomédicas, que requerem tempo e estratégia específica para seu funcionamento e efeito, além de pessoas especializadas para sua execução e acompanhamento.

Então, quando eu fiquei doente de coronavirus, meu pai não estava perto de mim. Antes de ficar doente, estive na cidade de Novo Airão, a 195km de Manaus, onde ele mora com minha irmã. Ele me disse que estava sentindo que precisávamos ter cuidados, mesmo que tivéssemos confiança no bhassessé, porque não conhecíamos a doença. Na minha família só eu que fui infectado pelo vírus, mesmo tendo adotado todos os cuidados.  Não sei exatamente onde fui infectado. Pode ter sido em uma padaria, um mercadinho, ou até mesmo na portaria do condomínio onde resido com minha família. Passei três semanas numa situação difícil.  Quando os exames testaram positivo reunimos as nossas forças mentais e espirituais com minha esposa para podermos pensar nos procedimentos necessários, já que a doença para além da sua causa e efeito atinge muito o lado psicológico da pessoa. Minha esposa, Jussara Garcez Barreto, é quem cuidou de mim enquanto continuava no isolamento e nossos filhos foram à casa da avó.

Meu pai não estava perto de mim, pois ele mora em outra cidade pequena. E mesmo tendo dúvidas sobre o funcionamento do seu bhasssessé para a Covid-19, ele me dava orientações através do telefone. Só que como estava doente, eu não conseguia ter aquela força para estar me tratando. Ele até me disse “filho não vai ficar falando por aí que você foi curado com nosso bhassessé porque ainda não temos como comprovar isso, para nós é uma doença que primeiro precisamos estudar para entender como funciona”.  Inclusive ele estava sugerindo que eu e meu irmão tomássemos ayahuasca para ver e descobrir a fórmula de bhassessé para a Covid-19.

Por outro lado, eu sentia medo e incerteza sobre o atendimento médico. Isso, porque, a vida dos indígenas na cidade é muito difícil. Nós indígenas sofremos preconceitos e discriminação de várias formas e em várias situações e contextos.  Eu percebo isso inclusive no olhar e nas atitudes das pessoas e não é diferente na área da saúde.  Tinha momentos que os médicos me atendiam bem, mas em outros não era bem atendido.  Essa incerteza me deixava mais inquieto e preocupado.  Todos os indígenas que moram aqui em Manaus compartilham um pouco esse sentimento: se eu passo mal, com falta de ar e vou para o hospital, será que vou ser atendido?  Porque muitos indígenas aqui morreram em busca de tratamento. A situação se torna mais difícil ainda quando continuamos vivendo tempos sombrios para as questões das políticas indígenas, onde uma parcela da sociedade se preocupa em manter-se privilegiada, enquanto outros sempre tiveram condições de vida desfavorecida. Nós indígenas, na cidade, estamos inseguros. Aliás, não fomos nós que viemos para cidade, mas foram as cidades que vieram para nossas terras. Mas as forças das mentalidades corruptas e preconceituosas sempre estão em vantagem e sufocam continuamente os nossos princípios culturais e educacionais.

Voltando para situação da saúde. Eu não precisei ser entubado, nem hospitalizado. O cuidado e atenção dada pela minha esposa (que não é indígena) foi fundamental.  Ela me acompanhava nas idas a hospitais e me dava orientações necessárias quando ia numa consulta. Em muitas situações, os médicos me atendiam melhor porque ela estava ao meu lado.   A condição financeira que temos fez diferença na aquisição dos medicamentos e outros materiais como inalador, bem como a disponibilidade do carro da minha sogra para ir e voltar do hospital. Os indígenas aqui em Manaus, assim como eu, cada um, em cada lugar que mora, luta para sobreviver. A maioria são artesãos, ambulantes, que moram em bairros de ocupação, sofrendo ainda mais preconceito e discriminação.  Nesse período da pandemia as coisas se agravaram porém, todos continuam com autoestima, lutando. Eu também retomei meu otimismo. Embora não tenha uma atuação plena no Movimento Indígena, entendo que o que estou escrevendo e pesquisando é uma forma de apresentar nossa luta pela descolonização do pensamento sobre o indígena.

Valentina: Fale sobre tua experiência como professor.

Rivelino: Hoje em dia tenho reconhecimento pela formação acadêmica, como professor em nível superior em uma faculdade particular aqui em Manaus, atuando nos cursos de Pedagogia, Administração e Ciências Contábeis. Na faculdade onde eu trabalho praticamente toda comunidade educativa, docentes e discentes, tem um grande reconhecimento e aceitação positiva, aliás, eu sou também, de certo modo, o reflexo da qualidade de ensino que temos no PPGAS-UFSC. Mas para isso, diariamente procuro ser melhor no domínio do conhecimento científico em diálogo com o conhecimento das faculdades excepcionais tukano.

Valentina. Como estão se tratando os indígenas que moram em Manaus?

Rivelino:  Morar na aldeia e morar na cidade tem seus desafios e suas diferenças também. Não é a mesma coisa o indígena viver na aldeia e viver na cidade. Muitas coisas mudam, muitas coisas passam a ser adotadas e passam a ser familiarizadas em novos costumes. No período em que fui infectado pela Covid-19, pensava: “puxa, lá na minha terra, lá na minha aldeia, nós temos uma planta com a que poderia fazer um chá”. Mas, também, os que moram na aldeia pode ser que pensem assim: “puxa, se tivéssemos um hospital mais próximo, nós teríamos maiores chances para se curar da covid-19”. Geralmente surgem essas situações e ideias, ou seja, muitos de nós, quando estamos nas aldeias pensamos que as coisas da cidade são melhores, ou viver na cidade seja a melhor alternativa. Porém, com o tempo, vivendo na cidade, quando passamos por situações difíceis, como é o caso da Covid-19, pensamos que se estivéssemos nas nossas aldeias, estaríamos distantes, ou teríamos maiores condições de estarmos bem isolados e longe da doença. Na verdade, é o sentimento que tive no momento mais crítico da doença, quando lutava para respirar da melhor forma possível.

A maioria dos indígenas que moram nas aldeias estão se tratando com medicinas caseiras, isso porque há uma descrença na forma de tratamento dado aos indígenas nos hospitais.  Uma vez ou outra vejo nas redes sociais o incentivo para uso das medicinas tradicionais, já que não há atendimento devido nos hospitais. Porém, não podemos deixar de reconhecer o esforço de muitos agentes da saúde, médicos, Ongs, instituições governamentais, lideranças das associações indígenas e outras pessoas de bom coração que arriscam suas vidas para levar um pouco de esperança nas aldeias. É um momento para nós indígenas revermos nossas práticas medicinais tradicionais, bem como o próprio Estado precisaria rever suas ações políticas para os povos indígenas em geral.  Meu pai, por exemplo, mora numa pequena cidade e lá ele trata com seu bhassessé os indígenas e não indígenas que vão à sua procura. Ele é do grupo de risco. Mesmo assim, tomado pela sua teimosia, ele vai atender os pacientes que o chamam. Além disso, tenho minha irmã, com quem meu pai mora, que há um tempo atrás começou a pôr em pratica o bhassessé. Ela também atende os doentes. Inclusive, estou escrevendo, já faz um tempo, um artigo sobre a prática de bhassessé desenvolvida pela minha irmã. Mas, toda vez que falo com eles por telefone, me dizem que não sabem se o paciente estava com Covid-19 ou não. Eles só me dizem que continuam atendendo vários doentes, principalmente meu pai que anda em vários lugares da cidade. Muitas vezes cheguei a chamar a atenção dele por causa disso, movido pela preocupação, é claro.  Além disso, tanto meu pai como minha irmã não cobram pela prática de seus bhassessé, pois cobrar não faz parte de seus propósitos, para eles o bhassessé é uma dádiva.  Pois, como disse, nós somos de linhagem de kumua (benzedores, bhassera), que defendem essa ideia.   

Valentina:  Qual é a leitura de teu pai sobre a situação atual da pandemia?

Rivelino: Primeiro, ele já passou por várias epidemias. Eu perdi dois irmãos por sarampo, muitos de nossos parentes morreram de gripe, de malária, pneumonia. Para ele, meu pai no caso, antes de tudo é preciso ter uma compreensão do bhassessé para poder lidar com a Covid-19. Ele também é muito cauteloso com o que pensa e com o que deve falar. Aliás, sempre usou essa estratégia. Em nenhum momento ele afirma que a cura da Covid-19 deve ser feita desta ou daquela forma.  Sendo ele um dos maiores kumu do noroeste amazônico, creio que ele se preocupa muito com o que fala. Aliás, é uma pessoa com pouca expressividade, que só passou a participar de pesquisas antropológicas a partir dos meus estudos, mas que também se preocupa com a ética e a moral de seus bhassessé.

Meu pai é consciente de que nós, indígenas, estamos sendo atingidos na pandemia pela falta de serviços de saúde, de acordo a nossas realidades e, além disso, com problemas sérios de reconhecimento de nossos direitos territoriais e políticos que garantam nossa autonomia. Essa leitura que meu pai tem, me faz entender que nós indígenas reconhecemo-nos como brasileiros, mas nossos direitos não estão sendo reconhecidos pela Nação. É um momento difícil e precisamos estar todos envolvidos. Para nós, indígenas, é muito importante a parceria acadêmica, o investimento nas nossas pesquisas, o reconhecimento de nossos saberes, de nossos modos diferentes de viver, nossos pontos de vista.  A abertura da antropologia aos acadêmicos indígenas vai fazer diferença. Aliás, já está fazendo diferença. Nós, indígenas, vamos continuar lutando, seja através da academia, ou da participação política no Movimento Indígena. Para nós, é importante entender que pensamos e vivemos diferente e queremos ser reconhecidos e respeitados nas nossas particularidades, através de uma política diferenciada e articulada com nossas autoridades e lideranças.  Seguimos na luta, todos.