Articulações e aprendizados com a Frente Indígena e Indigenista de Prevenção e Combate do CoronavÍrus (COVID-19)
Articulações e aprendizados com a Frente Indígena e Indigenista de Prevenção e Combate do CoronavÍrus (COVID-19) em Terras Indígenas da Região Sul do Brasil: uma entrevista com Joziléia Kaingang
29/04/2020. Por Valentina Nieto
Os povos indígenas têm sido historicamente dizimados por epidemias. São várias as condições que fazem com que sejam especialmente vulneráveis a epidemias e ao risco de etnocídio. Problemáticas ligadas aos seus territórios e a questões ambientais e sociais, como invasões ilegais de garimpeiros e grileiros, desmatamentos, entre outras, colocam em risco seus direitos, a segurança alimentar e, consequentemente, as suas vidas. Além disso, as formas de organização social, a convivência de famílias extensas, o compartilhamento de utensílios entre parentes, também impactam na disseminação de doenças infecciosas, como é o caso da pandemia pelo vírus corona/COVID-19. Os problemas que o cidadão não-indígena enfrenta com as inadequações do Sistema Único de Saúde (SUS) para diagnosticar e tratar os casos críticos se multiplicam devido às especificidades do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e à falta de uma articulação adequada entre esse Subsistema e os serviços mais especializados do SUS.
Uma das principais estratégias que as organizações indígenas assumiram para se prevenir da pandemia foi o de fechar a entrada e saída de suas aldeias. Porém, enfrentam problemas de alimentação, pois muitos dependem de alimentos, recursos e insumos que são adquiridos em mercados. Vale reforçar que as medidas de auxílio emergencial definidas pelo poder público para a população indígena não têm chegado nas comunidades e Terras Indígenas e/ou os colocam em risco ao promover a saída de indígenas para acessar esses recursos.
As organizações indígenas têm tido um papel importante na articulação de redes e ações para enfrentar a pandemia, usando ativamente as redes sociais, divulgando materiais, comunicados, relatos, e também pedindo auxílio à sociedade civil para suprir as necessidades de algumas das aldeias que estão em situação de grande vulnerabilidade.
Joziléia Kaingáng é uma liderança indígena, antropóloga, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC, coordenadora pedagógica da Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da UFSC e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural (IBP). Ela vem liderando, junto a dezenas de outras lideranças indígenas, a Frente Indígena e Indigenista de Prevenção e Combate do CoronavÍrus (COVID-19) em Terras Indígenas da Região Sul do Brasil, lançada em 30 de março de 2020. Essa frente surgiu em resposta à preocupação relacionada à especial vulnerabilidade dos povos indígenas Guarani, Kaingáng, Laklãnõ/Xokleng, Xetá e Charrua que vivem na região sul do Brasil. Joziléia nos contou como tem sido a articulação da Frente.
Valentina Nieto: Quais os principais desafios enfrentados pelos povos indígenas neste momento?
Joziléia Kaingang: Quando começaram a ter casos de COVID-19 no Brasil e vimos que a pandemia estava avançando, e que inclusive foram cancelados eventos indígenas importantes como o Acampamento Terra Livre, pensamos que devíamos tomar atitudes para proteger nossos povos, dado que não parecia haver uma estratégia por parte do governo.
Assim a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) convocou uma reunião com lideranças indígenas das diversas regiões do país para discutir como iríamos enfrentar o coronavírus. Formaram-se grupos por regiões. Formamos um grupo pequeno do Sul, com lideranças do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Cada uma destas lideranças pensou quais seriam as pessoas que, por sua vez, poderíamos articular em cada estado, líderes nas aldeias, agentes de saúde, assim como parceiros indigenistas, com o objetivo de formular questionamentos para a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e a SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e pensar estratégias para proteger nossos territórios. Convidamos estas pessoas para participar e definirmos algumas ações:
Mapeamos algumas possíveis instituições que poderiam articular-se ao nosso trabalho. Observamos as ações da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), que têm feito discussões sérias sobre este momento, considerando as diversas regiões e os diversos contextos. Por exemplo, se sabe que no norte do país os indígenas têm grandes territórios e moram em comunidades isoladas, que é diferente do Mato Grosso do Sul, onde os indígenas vivem em terras que estão em processo de retomada e próximos às áreas urbanas, como é o caso aqui em Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul.
A primeira ação foi a de lançar o hashtag “fica na aldeia” e traduzir os textos às línguas Kaingáng, Guarani, e Laklãnõ/Xokleng, explicando aos parentes o que é o coronavírus e porque devem ficar na aldeia. Também, que compreendessem o grave problema que estaríamos expostos. Divulgamos isto no Facebook, que é uma forma de chegar às comunidades.
Dado que as CTLs (Coordenações Técnicas Locais) da FUNAI não tinham recursos no primeiro momento e quando houve o recurso emergencial para o enfrentamento à pandemia, a presidência desse órgão não fez o repasse de recursos para a compra de alimentos e sua entrega às aldeias, percebemos que precisávamos ter um outro meio para arrecadar. Montamos o “doa-lá”, a plataforma para receber recursos financeiros online, e também a arrecadação de alimentos em pontos de coleta. Conversamos com a FUNAI e a SESAI, com os coordenadores dos polos base, para garantir o transporte das cestas básicas e cumprir o protocolo de higienização, pois a última coisa que a gente quer é que uma doação seja um vetor de disseminação de vírus. O contato com a rede de lideranças é fundamental, para saber quais comunidades estão em emergência e é aí que encaminhamos as doações.
Nosso grupo está se tornando maior. As lideranças indígenas que fazem parte da SESAI trazem a nós os boletins epidemiológicos, mas sobretudo os relatos das comunidades. Quando há casos de coronavírus nas populações vizinhas, todos postam nas redes sociais, nos grupos de Whatsapp para que as comunidades fiquem em alerta. Por exemplo, hoje [20 de abril] ficamos sabendo que tem uma cidade a 13 km de minha aldeia que está com um caso de coronavírus confirmado e 26 casos em monitoramento. Só conseguimos essa informação porque tem alguém na aldeia que faz parte de outra rede e a põe circular nas nossas redes para que as comunidades fiquem alertas.
As lideranças têm exercido um papel muito valioso para convencer os indígenas para que não saiam das aldeias.
Esta época do ano, antes da páscoa, é um período em que os Kaingáng e os Guarani saem das comunidades para vender artesanatos nos centros urbanos. Este ano eles não puderam ir, o que causou um grande impacto na economia local, porque justamente este período gera um recurso financeiro que mantém as famílias até novembro, quando eles voltam a sair para comercializar o artesanato no final do ano e durante o verão. Assim, as lideranças estão conseguindo convencer os parentes a ficarem na aldeia neste período, mesmo sem comida, até que a gente, da rede, consiga fazer chegar alimentos a esses parentes.
O governo de Santa Catarina destinou um recurso para os municípios, para atender de forma emergencial as comunidades carentes. Mas algumas aldeias não conseguem obter os recursos que chegam aos CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) dos municípios, porque há um conflito de interesses, especialmente as comunidades que estão em retomada de terra, em acampamento. Estas comunidades são as mais frágeis, as que mais precisam destes recursos.
Valentina Nieto: Há um maior risco de contágio das comunidades indígenas?
Joziléia Kaingáng: O nosso modo de relações dentro da comunidade é diferente do não indígena. Nós indígenas vivemos em famílias extensas. Sei que se alguém na aldeia se contaminar, logo toda a aldeia irá se contaminar. Nas nossas famílias os tios são como pais, os primos são como irmãos, os mais velhos ficam com a gente, moram com a gente. Não podemos tentar isolar as famílias, se não a comunidade inteira.
Alguém me falou: “na nossa aldeia os mais velhos estão com medo de morrer”. Isso é muito sério. A gente sabe que o espírito da doença é muito forte porque veio mesmo para devastar. Porque toda doença tem um espírito. Essa doença não veio por nada, veio para tomar parte de algo que tem sido desrespeitado há algum tempo: as pessoas não respeitam o outro, nem vivo, nem espíritos. Assim, a doença veio se manifestar.
Todas as populações vão ser afetadas. Precisamos ter responsabilidade e respeito. Cada um de nós deve cuidar do outro, com afeto mesmo. Precisamos saber que não vamos ficar aqui para sempre, a vida é um ciclo. Mas precisamos respeitar os diversos ciclos, de tudo, dos humanos, dos animais, da vida toda. Espero poder contar a história de como conseguimos aprender com tudo isto e que sirva como experiência para outros momentos que virão.