Chamada: “E quando a limonada antropológica azeda de vez?”

07/06/2022 10:16

Em 2022 a publicação de Os Argonautas do Pacífico Ocidental completará um século. Desde então, este monumento da etnografia balizou muitas imaginações sobre quais são os protocolos, na Antropologia e em tantas outras áreas, para um trabalho de campo bem sucedido. É verdade que em cem anos esta obra tanto já foi celebrada como também colocada sob muitos prismas críticos, seus traços funcionalistas, o modo de descrição dos “nativos”, o contexto colonial ignorado, para citarmos apenas
alguns dos debates mais comuns que ela despertou. Passadas tantas décadas de críticas e celebrações, no entanto, os empreendimentos de trabalho de campo descritos em nossas monografias permanecem guardando um cacoete malinowskiano: são sempre bem sucedidos. Na cartilha antropológica, no melhor espírito redentorista, o imperativo é que quando algo não ocorre como se espera, faça do imponderável uma oportunidade para descobrir novas questões, acionar outros debates, reconhecer espaços antes
invisíveis. Talvez isso seja efeito do antídoto contra-o-positivismo que aplicamos em nossos textos e nossos cursos, o de uma ciência humana que transforma as relações – mesmo aquelas não inicialmente esperadas ou planejadas – em seu objeto de interesse e reflexão.
Esta proposta parte do reconhecimento deste enorme não-dito em antropologia, de quando o trabalho de campo dá errado, fracassa, desanda. Brigas com interlocutores, impedimentos burocráticos, desentendimentos com comitês de ética, ou mesmo perseguições, paixões, adoecimentos, acidentes, mortes, são inúmeras as possibilidades de assombros cada vez que entramos em campo. Não nos referimos a dificuldades ou desafios, mas a falhas que impedem completamente o andamento da pesquisa. Talvez seja hora de reconhecermos que a ausência deste debate é um aspecto estrutural de nossa própria narrativa sobre o que seja a antropologia ou sobre o que gostaríamos que fosse num plano ideal. Ao contrário de nossos colegas historiadores que parecem muito mais dispostos a reconhecer que não tiveram acesso aos arquivos ou não puderam ler suas fontes ou dos nossos colegas de bancada que assumem ter perdido amostras ou estragado reagentes, na antropologia o trabalho de campo parece gozar da aura da infalibilidade. Reforçamos, mais uma vez, nossas mitologias heroicicistas e colonialistas ou mesmo sustentamos uma ideia de eterna adaptabilidade e infinita e prodigiosa criatividade para contornar os impedimentos.
Nós também temos os nossos próprios eventos, que de alguma maneira serviram como um pontapé inicial para essa conversa. Eu, Rodrigo Toniol, por exemplo, fiz pesquisa de campo semanalmente durante um ano no setor de cuidados paliativos de um hospital paulista. O ambiente hospitalar há mais de uma década constitui uma das principais frentes de minhas pesquisas, mas naquele caso as questões que
emergiram foram de outra natureza. A proximidade com a morte em um momento específico de minha vida em que a morte assombrava meu entorno não impediu que eu seguisse no trabalho de campo, mas inviabilizou qualquer produção acadêmica sobre ele. Conscientemente optei por não extrair nenhum produto antropológico imediato daquela experiência, que desde o início foi traçada como parte de um projeto de pesquisa. Naquele caso, o limite não foi interposto pelo campo, mas o campo alcançou um ponto que era o limite de até onde estava disposto a ir. E eu, Soraya Fleischer, tive uma briga com a anfitriã que me recebia em Antigua, durante a pesquisa de doutorado. Fui acusada de amigar-me com uma parteira tida como concorrente, de amotinar-me contra a liderança institucional, de discutir assuntos considerados como proibidos naquele centro obstétrico. O campo foi fechado, emails ficaram sem resposta, um silêncio se impôs naquela relação, inviabilizando a continuidade da pesquisa comparativa entre o Brasil e a Guatemala.
Aqui pretendemos reunir relatos e reflexões que nos permitam pensar sobre este tema. De antemão conseguimos imaginar algumas questões que aparecerão, mas certamente não todas elas. Por isso, essa é uma chamada aberta. Além disso, suspeitamos que provavelmente serão relatos na primeira pessoa do singular ou do plural, em autoria única ou compartilhada. Não necessariamente essa chamada prima por
uma perspectiva umbigo-centrada, pela eutnografia ou uma gestalt individualizante. Talvez muitas histórias toquem em feridas pessoais ou coletivas, por vezes ainda abertas, ou em tabus e não-ditos da área, fazendo com que estratégias estilísticas, visuais e narrativas precisem ser consideradas para garantir privacidade, pactos éticos ou até segurança individual. Sugerimos que os textos tenham até 15
páginas ou até 6.000 palavras (sem contar as referências), para que tenham espaço para crescer a partir de eventuais comentários e suplementações que fizermos como organizadores da iniciativa. Também pedimos que até 01/06/2022 os textos sejam enviados para nossos dois emails. Fiquem à vontade para nos consultar no caso de dúvidas e de divulgar amplamente essa chamada.

Guardem nosso fraterno abraço.
Rodrigo Toniol (Departamento de Antropologia Cultural/UFRJ) –
Soraya Fleischer (Departamento de Antropologia/UnB) –